PREÂMBULO À EDIÇÃO BRASILEIRA
Fé e Ciência:
um desafio para o judaísmo moderno
Durante séculos a cultura ocidental desafiou os preceitos básicos do judaísmo, ora confrontando-se diretamente com eles, ora seduzindo incontáveis judeus sob a ilusão de uma possibilidade conciliatória entre duas vertentes aparentemente tão diversas. Historicamente, a comunidade judaica respondeu de três formas praticamente antagônicas a este desafio: a completa negação de uma interação com esta cultura externa, a total assimilação desta cultura pelo judeu, descaracterizando-se assim seus vínculos com a sua tradição milenar, ou uma postura intermediária entre estes dois extremos. Ambas as possibilidades de reação mais radicais - a introversão completa ou a total assimilação - tendem a minimizar um conflito que inevitavelmente surgirá se o judeu optar por um caminho intermediário.
Antes de abordarmos o caminho intermediário, devemos nos concentrar no paradoxo oferecido pela sobrevivência histórica dos judeus que optaram pela primeira escolha, que consistiu na mais completa introversão para dentro do judaísmo, sem que se estabelecesse a relação de uma interação mais ampla com o ambiente externo. Se analisarmos a sobrevivência de nossas tradições pelo parâmetro da transmissão de sua prática pelas várias gerações ao longo da história, veremos claramente que esta vertente, aparentemente mais radical, é o maior exemplo de sucesso em relação a esta meta. Se nos perguntarmos qual o segredo da perpetuidade do judaísmo ortodoxo (rabínico), veremos que ele se baseia na contínua discussão dos preceitos legais (Halachá) que normatizam a vida do judeu em consonância e de forma coerente com a tradição. Assim, a maneira de se utilizar a eletricidade nos dias de hoje durante o dia de descanso (Shabat) é normatizada de forma coerente com o que foi expresso no Pentateuco (Torá) há milênios. A releitura da Torá no nosso tempo, conduzida por rabinos renomados, se faz através do método historicamente ilustrado no Talmud e, ao trazer-se a Torá para os dias atuais através deste mesmo método rabínico, empresta-se a ele uma característica atemporal que lhe permite ser perpetuamente empregado. É graças ao uso adequado deste método ao longo das várias gerações que, na minha humilde opinião, reside o milagre da sobrevivência religiosa e nacional do povo judeu, a despeito dos obstáculos que historicamente enfrentou. Este método permite ao judeu cumprir os mandamentos que lhe foram outorgados no contexto de uma tradição milenar ao longo da história até os dias de hoje, e é esta possibilidade de manter o cumprimento destes mandamentos na atualidade que nos fez chegar, como judeus, até este momento.
Para corroborar a essencialidade da aderência ao judaísmo rabínico como condição vital da sobrevivência religiosa do judaísmo, há muitos exemplos na história, como o dos caraítas, que há cerca de pouco mais de mil anos questionaram o judaísmo rabínico e os preceitos dele derivados e, em consequência da sua não observância, acabaram se desligando do judaísmo de maneira permanente e irreversível.
Entretanto, muitos judeus estão no meio do caminho entre estas duas opções tão diferentes. Urge, assim, que se medite sobre um cenário que permita a conciliação de uma interação do judeu com um ambiente secular tolerante sem que este perca seu elo com sua tradição milenar, nem a possibilidade de passá-la adiante para seus descendentes. Esta possibilidade de cumprimento dos mandamentos tradicionais e sua transmissão para as novas gerações é, historicamente, a única fórmula estabelecida de sucesso de sobrevivência do povo judeu e, portanto, não pode de forma alguma ser prejudicada por uma interação com o ambiente externo. Por conseguinte, qualquer modelo de interação do judeu que não quer se assimilar com o ambiente externo deverá permitir que este indivíduo tenha total liberdade, em um contexto de ampla transparência, para a prática de suas tradições milenares. Desta forma, é também um pressuposto que esta interação não poderia interferir filosoficamente com a cosmovisão judaica de estrita aderência ao cumprimento dos mandamentos que foram outorgados ao povo judeu. Preferivelmente, então, esta mesma interação com o ambiente externo deveria ainda prover ao judeu elementos que intensificassem inclusive sua fé religiosa e sua aderência aos mandamentos sagrados. O judeu, neste processo interativo, deveria ainda poder atuar de forma ativa como partícipe essencial deste mesmo cenário externo, em posição de igualdade com os demais integrantes. Seja ele um advogado, professor universitário, médico, cientista etc., deveríamos poder imaginá-lo atuando plenamente na sua escolhida função, contribuindo para a melhoria do ambiente que o acolheu e, ao mesmo tempo, aperfeiçoando-se no processo dessa interação.
Analisaremos a seguir a possibilidade da existência de um relacionamento entre o judeu que não quer se assimilar e um ambiente externo que lhe seja tolerante, respeitando-se os requisitos esboçados acima. Para que haja a possibilidade desta interação, deveremos, portanto, poder ter: 1) tolerância do ambiente externo, que permita ao judeu o cumprimento dos mandamentos em um contexto de plena transparência; 2) um substrato filosófico que embase esta interação entre judaísmo e secularidade e que possa conciliar visões aparentemente discordantes entre judaísmo, racionalidade e ciência; e 3) a possibilidade de o judeu encontrar neste ambiente externo inclusive elementos que intensifiquem a sua fé.
A tolerância hoje é apanágio da visão iluminista que domina a sociedade ocidental e que outorga a liberdade de culto na maioria dos países. Não nos ateremos aqui à consideração dos movimentos antissemitas que podem potencialmente cercear esta liberdade de expressão de valores religiosos judaicos. Assim, assumindo a tolerância do meio externo, devemos nos concentrar no modelo filosófico que embase a interação entre o judeu que não se quer assimilar com um ambiente externo tolerante.
Um dos desafios mais importantes do judeu frente a modernidade é conciliar teorias científicas hoje vigentes e apoiadas por complexa e moderna tecnologia e os pressupostos de sua fé. Karl Popper, filósofo que se dedicou à Filosofia da Ciência, propôs em seu livro "A Lógica da Pesquisa Científica" que, para algo ser científico, deveria ser também passível de falsificação. Popper explica que, na evolução natural das ideias científicas, sempre deve haver a possibilidade de se poder provar a sua falsidade, à medida que se acumulam dados experimentais que possam contradizê-las. A seguir, uma nova hipótese é então gerada, que acomoda estes novos dados conflitantes com a primeira ideia e a substitui, permitindo assim o contínuo progresso científico. Além disso, conforme Kant preconizou em seu livro "Prolegômenos a Toda Metafísica Futura", para que algum fenômeno seja cognoscível, devemos poder analisá-lo através de nossa experiência dele, o que implica que este fenômeno seja passível de observação pelos nossos sentidos. Do ponto de vista científico, pelo menos no tocante às ciências da natureza, nosso armamentário de observação incluiria tanto os nossos sentidos quanto aparelhos que os ampliem e permitam observar algo inicialmente inacessível às nossas capacidades sensoriais, como microscópios, telescópios, etc. Depreende-se, então, que hipóteses não passíveis de falsificação, para usar o termo empregado por Popper, e, se pertinentes às ciências naturais, que não sejam factíveis de serem analisáveis pelos nossos sentidos, ampliados ou não pelo uso de aparelhos específicos, não podem ser analisadas cientificamente. Desta forma, crenças básicas do judaísmo, por não serem falsificáveis - já que algo cuja existência depende da fé não se presta a falsificação - e, por não serem factíveis de serem vividas de forma objetiva, não podem ser analisadas e muito menos contraditas pela ciência. Estabelece-se assim um divisor de águas que permite, por exemplo, que a vivência científica de um judeu ortodoxo que se dedique profissionalmente à medicina, física, biologia, etc. não conflite com suas crenças tradicionais.
É neste universo, onde fé e ciência se separam, que se encontra a neutralidade necessária a uma vivência plena e filosoficamente coerente de ambas vertentes, tão fundamentais para o judeu que interage com um ambiente externo tolerante.
É possível intensificar nossa fé no Criador através do estudo da ciência? Esta pergunta representa o caminho que muitos trilharam no tocante à sua religiosidade. A ciência nos permite, de forma objetiva, aquilatar uma pequena fração da magnânima obra do Criador. É difícil não se maravilhar com a beleza da disposição de pétalas em uma rosa, nos detalhes anatômicos das diversas partes do corpo, da harmonia do movimento dos planetas, etc. A ciência não nos responde qual é a Primeira Causa - para usar a expressão empregada por Aristóteles -, mas permite que nos inebriemos com seus efeitos, e tal estado de estupefação pode intensificar, ou mesmo despertar, um sentimento religioso.
A interação entre o judeu observante e o ambiente secular tem, pois, um pano de fundo sobre o qual se desenrolar. Há a necessidade de indivíduos versados de forma sólida em ambas as áreas para poder ensinar à juventude como se conduzir de maneira judaica em um ambiente externo, servindo-lhes especialmente de modelo para esta atuação. Ensinadas em um contexto de profundo respeito aos valores judaicos tradicionais, o estudo laico pode inclusive complementar e contextualizar melhor o ensino religioso. Da mesma forma, o estudo religioso pode abrir novas maneiras de entender conhecimentos laicos e permitir ao indivíduo que cultive sua espiritualidade e aprimore sua conduta moral constantemente, melhorando assim, progressivamente, sua atuação em uma sociedade global mais humanizada.
O presente livro Torá Umadá ("Torá e Conhecimento Secular"), escrito pelo Rabino Dr. Norman Lamm, aborda filosófica e exatamente este cenário de possível interação entre o judaísmo e o ambiente secular. Sua leitura nos estimula a trilhar a filosofia proposta, entre outros, pelo rabino Hirsch - "Torá im Dérech Érets" (Torá no meio secular) - que, de maneira brilhante, conseguiu tornar prático o estudo laico no contexto de uma sólida educação judaica ortodoxa em sua escola em Frankfurt. O caminho que nos aponta Hirsch, cuja filosofia subjacente encontra-se magnificamente exposta no seu livro "Dezenove Cartas sobre Judaísmo", nos estimula a não abandonar o ideal desta interação, sem que isso nos conduza a assimilação. O maior antídoto conta a assimilação é, de acordo com o ilustre rabino Hirsch Z"L, uma sólida educação judaica no contexto de um profundo respeito às nossas tradições.
Prof. Dr. Auro del Giglio