Introdução
Os personagens e heróis da Bíblia são, sem dúvida, algumas das figuras mais conhecidas da História. Até mesmo pessoas pouco versadas nas Escrituras, que não leem a Bíblia com regularidade, pelo menos sabem os nomes das personalidades mais importantes. Direta ou indiretamente nos deparamos com elas o tempo todo, na arte, na literatura, nas falas ou no folclore. Ainda assim, esses homens e essas mulheres da Bíblia continuam sendo os mais esquivos, mais enigmáticos e menos compreendidos entre todos os heróis. Este desconhecimento - ou incompreensão - não se deve, necessariamente, à ignorância e, sim, ao fato que as personas bíblicas são tão familiares, tão famosas, que se tornaram quase estereótipos, vítimas de padrões de pensamento aceitos, encaixados em modelos convencionais e sujeitos a suposições nunca questionadas que impediram qualquer tentativa de uma compreensão mais profunda. Não é incomum algo que ?todo mundo conhece e sabe o que é? não receber a atenção que merece.
No entanto, outro fator, mais crucial, atua aqui: a natureza da própria narrativa bíblica faz até mesmo aqueles mais meticulosamente familiarizados com a história tal como é contada se confrontarem com um atordoante branco quanto às personalidades lá representadas.
Dois elementos fundamentais nas Escrituras emprestam a esses relatos caráter e força especiais e produzem o mistério que cerca os protagonistas. O estilo da escrita é quase sempre objetivo e distante, e os heróis e as heroínas não são idealizados. É como se fossem vistos do alto, de modo mais abrangente e, ao mesmo tempo, mais desengajados do que a crônica histórica padrão. A narrativa é também tão factual quanto possível, sem tentativas de penetrar na psique dos personagens ou de analisar suas razões. As técnicas e truques dos dramaturgos, o monólogo revelador, a conversa consigo mesmo que explica sonhos e anseios, um coro que provê detalhes de fundo, tudo isso está ausente nas Escrituras. É o estilo quase seco que faz a história bíblica ser impactante. Aqui, cada sentença, cada ação, é relevante, indicando, por meio das mais sutis alusões, ocorrências cujo significado vai ressoar nas almas dos homens e no mundo inteiro. Nós assistimos aos eventos, mas suas implicações permanecem obscuras; vemos o resultado dos eventos, sem jamais saber claramente coisa alguma sobre seus mecanismos internos. No que pensava Abrahão quando levava seu filho Isaac para o sacrifício? Como se sentiu Moisés quando o Todo-Poderoso revelou a Si mesmo. Por que Avshalom [Absalão] rebelou-se contra seu pai? Só podemos adivinhar as respostas a essas perguntas; nas Escrituras, não se diz palavra a respeito delas.
Outro aspecto dessa visão despojada é o quadro multifacetado que ela provê. Embora seja clara e inequívoca a distinção entre o bem e o mal, entre pecadores e santos, não há uma tentativa de ajustar os acontecimentos e incidentes para se encaixarem na imagem geral de uma personalidade. Os grandes homens e mulheres que servem de exemplos e modelos para todas as gerações não são descritos apenas em termos de uma refulgente admiração. Suas falhas, fracassos e dificuldades são descritas com a mesma objetividade como os dos pecadores; e o contrário também é verdadeiro: os aspectos bons daqueles geralmente considerados personalidades negativas são mostrados também. Os bons sujeitos das Escrituras não são santos de gesso, todos doçura e luz; nem os sujeitos maus são monstros, mas seres humanos que se revelam em todos os seus muitos (e às vezes contraditórios) aspectos.
A persona bíblica é vista não apenas em suas cores verdadeiras, mas também no contexto de uma dimensão maior. O valor individual de alguém nunca é julgado simplesmente com base em sua existência privada, mas também do ponto de vista de suas implicações mais amplas. Heróis e heroínas bíblicos têm suas vidas privadas, mas cada ação sua tem, também, um significado para a sociedade como um todo. A vida privada de uma determinada figura pode ser um modelo de bondade e decência (ao menos a seus próprios olhos), mas pode ser bem destrutiva em termos da sociedade. Por outro lado, o pecado privado pode nem sempre levar a um resultado negativo no contexto da família, da sociedade ou do estado. Na Bíblia, eventos são avaliados em relação à época em que ocorreram e também ao espectro total do tempo histórico, levando inevitavelmente a mudanças na avaliação das ações e dos eventos, no relacionamento entre o grande e o pequeno, ao importante e ao trivial. Assim, o grande e poderoso governante acaba se revelando parte de um pequeno e insignificante episódio histórico, e o miserável perseguido demonstra que é a única pessoa significativa em toda uma era.
Este parâmetro de significância estende-se além do julgamento da história, porque, nas Escrituras, tudo isso é medido em termos do tempo finito e da eternidade. Assim, não importa a exaltação do seu ponto de vista, e o julgamento geral dos eventos e das pessoas, a Bíblia tem a ver com todas as dimensões - o exaltado e o abstrato ao longo de pequenos detalhes da vida, tal como é vivida no nível mundano, humano. A exaltação pode, aqui, abranger o sonho fugaz, menor, passageiro. Assim, a narrativa bíblica constrói-se sobre uma generalização que abrange grandes períodos de tempo e eventos fascinantes e, ao mesmo tempo, atém-se aos menores e mais precisos detalhes. A maior coisa do mundo não é descrita como sendo maior do que a capacidade do homem de se reportar a ela. E a menor nunca é trivial demais, e sim, sempre, importante para a compreensão da existência.
As grandes pinceladas na tela bíblica são suplementadas aqui e ali por miniaturas muito detalhadas; juntas, essas imagens produzem retratos notáveis, multidimensionais, cheios de vida e vigor. Essas características produzem a beleza e o poder da história bíblica e também dificultam compreender os personagens. Nenhuma história é simples e unidimensional; nenhum personagem é autoexplicativo. Como na vida real, há variações e contradições; e, como na vida real, elas sinalizam soluções sem na realidade as fornecer.
Há outro aspecto no problema das personas bíblicas. A Bíblia não é um livro a ser lido ociosamente, de passagem, e os homens e mulheres das Escrituras são mais do que meros retratos da vida; eles continuam a viver e a atuar muito depois de suas mortes neste mundo. O antigo costume judaico de falar a respeito dos personagens bíblicos usando o tempo presente exprime uma experiência genuína. Eles não são figuras históricas comuns, e sim arquétipos; desta forma, levam suas vidas e as continuam não apenas na literatura e na filosofia, mas nas vidas de seus descendentes ao longo de gerações. Em certo sentido, continuam a viver e também a evoluir ao longo da história judaica e em sua experiência física, como parte da personalidade coletiva da nação judaica.
Durante gerações, milhares de comentários têm sido escritos, e milhares de lendas surgiram e se tornaram parte integral da história de cada personalidade bíblica. Dimensões e aspectos apenas sugeridos nos relatos bíblicos se desenvolveram, e cada personagem ganhou em profundidade e substância com sua grande exposição no Talmud, na Cabala, na tradição oral e nos contos folclóricos. Nenhuma história bíblica está completa sem esta camada adicional de conteúdo, que a cada retrato acrescenta novas formas e linhas, resolvendo alguns problemas, adicionando novo material e produzindo novos esboços que, por sua vez, devem ser preenchidos e completados.
Esta coleção de retratos selecionados de personagens bíblicos é uma tentativa de preencher alguns desses esboços num retrato, que esclareça certas coisas sugeridas nas Escrituras. É uma tentativa de compreender por dentro algumas figuras bíblicas bem conhecidas, analisar suas motivações, tentar entender suas experiências espirituais e aspirações no contexto do período histórico no qual viveram. Para tentar apresentar um retrato complexo e não meramente se satisfazer com uma retrospectiva histórica, este material deriva de fontes judaicas tradicionais. Na maioria dos casos, essas fontes não estão listadas, pois o material foi recolhido de muitos níveis e tipos do rico tesouro da literatura judaica; e, pela própria natureza das coisas, há muito mais coisas aludidas do que escritas explicitamente. Leitores familiarizados com essas fontes saberão reconhecer as alusões em maior ou menor grau, enquanto os que estão fora da cultura judaica só iriam se confundir com referências muito detalhadas.
Devido à complexidade das personas da Bíblia, não tem sido possível debatê-las em todos os seus variados aspectos. Portanto, o objetivo destes capítulos é comentar uma faceta de um determinado personagem - um ponto de vista que o, ou a, ilumine de certa maneira e seja relevante quanto aos problemas e eventos dos dias atuais.
A necessidade de lidar com um quadro limitado reduz, naturalmente, o âmbito de cada retrato, de modo a que cada capítulo deve ser visto como a elaboração e aperfeiçoamento de um detalhe dentro do todo. Assim, certas personalidades foram omitidas, porque esta estrutura impede que se faça justiça à sua importância total. Jacob, Moisés e David são personagens tão fundamentais, tão multidimensionais que não seria apropriado restringir-se a um ou outro aspecto de suas personalidades.
Os personagens neste livro têm, portanto, significado duplo. São personagens bíblico-históricas e também figuras arquetípicas de certo modo relevantes para a vida interior do indivíduo moderno, e também para a sociedade e a política modernas. Nem todas essas pessoas foram personagens modelos; há bons e maus, aqueles cujos atos foram perpetuados até hoje e os que serviram de advertência e de sinal de alarma para que não se repitam erros do passado.
Mais do que tudo, o objetivo deste livro não é fornecer todas as respostas, e sim estimular o leitor a conhecer melhor os homens e as mulheres da Bíblia, a ler - ou reler - as Escrituras para seu próprio benefício e redescobrir o prazer do estudo da Bíblia que é um mapa do passado, um guia para o presente e uma referência para o futuro.