Introdução
Em meu livro anterior - Decifrando a Criação -, abordei o tema do início do Universo por meio da análise dos três primeiros versículos do Gênesis.
O primeiro deles (Gênesis 1:1) descreve a criação do Universo e de um planeta singular chamado Terra, uma obra de Deus, o Criador, que o fez existir a partir do nada.
No segundo versículo (Gênesis 1:2), a Torá nos relata como era esse recém-criado planeta, informando que a Terra estava desabitada, tal qual o planeta Marte, isto é, sem qualquer tipo de vida, seja humana ou animal, e nele imperava a escuridão, pois, devido a alguma razão " talvez a existência de uma atmosfera similar à do planeta Vênus", a luz solar não podia alcançá-lo. Somos informados também que nele existia um elemento fundamental que o diferenciava de qualquer planeta do sistema solar e provavelmente dos outros sistemas galácticos: água em estado líquido. Aliás, muita água, tanta que nem sequer existia terra firme, já que os oceanos primitivos cobriam totalmente a superfície da terra.
Outro elemento constante do inventário deste planeta era o vento, projetado pelo Criador como um dos instrumentos que iria utilizar no desenvolvimento de Sua obra.
O terceiro versículo (Gênesis 1:3) se refere à criação da luz que, de acordo com a maioria dos Sábios do Talmud, seria a luz solar. De uma forma não explicitamente descrita na Torá, Deus faz com que ela penetre na atmosfera terrestre e ilumine a superfície do planeta.
O texto bíblico continua até o versículo 20 narrando o que Deus criou para utilizar na transformação da Terra, a fim de prepará-la para poder sustentar as vidas animal e humana.
Este relato nos é apresentado na forma característica dos textos da Bíblia Hebraica: sucinta e precisa.
De certa forma, este livro é uma continuação do já citado Decifrando a Criação, e também nele nos concentraremos na análise de três versículos bíblicos: Gênesis 1:20, 1:21 e 1:22. Eles apresentam uma nova etapa na história da Criação, a saber: a criação da vida.
No versículo 1:20 do Gênesis, a Torá descreve o mandato Divino que determina o surgimento da vida. Como em todos os atos da Criação, excetuando o primeiro, Deus utiliza um "agente" - neste caso, a água -, ao qual ordena a produção de uma nova Criação. Assim, quando Ele cria a vegetação, em Gênesis 1:11, ordena à terra que faça surgir as plantas e as árvores. Já no versículo 1:20 supracitado, Deus ordena à água que faça surgir os primeiros seres vivos, sendo preciso determinar numa análise mais detalhada que tipo de animais foram então criados, uma vez que, como sabemos, existiu uma segunda criação de animais durante o sexto dia.
O versículo 1:21 do Gênesis descreve a origem da vida animal que, tal como virá a acontecer na criação do ser humano, se dará em duas etapas. A primeira se constituirá na criação do corpo, e ela não está explicitamente indicada nos versículos 1:20 e 1:21. A segunda está descrita na Torá através de um verbo reservado para um tipo especial de Criação sem "agentes" intermediários: bará, que indica uma criação ex nihilo. Neste versículo analisaremos o registro bíblico dos dinossauros.
O versículo 22 do capítulo 1 nos indica que a geração da vida a partir do nada deveria ocorrer somente uma única vez. Nele, a morte não é mencionada e, logo após a criação da vida, a Torá indica como o Criador estabeleceu um mecanismo para que a vida dos seres que Ele criou tenha continuidade: a bênção da reprodução.
No primeiro capítulo do Gênesis, encontramos dois tipos de criação: (1) as que são unívocas e cujos eventos não se repetem. Os exemplos são a criação da matéria no versículo 1:1, o surgimento da terra firme no terceiro dia e a colocação do Sol e da Lua no quarto dia. São criações que começam e terminam em um dia determinado; (2) as que dão início a um ciclo que prosseguirá numa sequência de acontecimentos "naturais". Exemplo disto é a criação do ciclo das águas (evaporação, precipitação) que teve início no segundo dia e continuou a ocorrer permanentemente. Outro exemplo é a criação das plantas com suas sementes, que assegurarão sua perpétua reprodução, e a dos animais, aos quais o Criador concedeu a bênção da reprodução sexuada.
Estas são as principais ideias que nos são apresentadas nos três versículos que descrevem a origem da vida.
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Neste livro faremos também uma comparação entre o relato bíblico da origem da vida e o que a Ciência diz sobre este tema, sem que, ao estabelecer esta comparação, nossa visão seja apologética.
Ciência e Torá emanam de pontos de partida completamente diferentes. O da Bíblia assume que Deus é o Criador do mundo. Já a Ciência moderna não admite um ato de Criação, embora não possa provar que isto não tenha ocorrido.
Nosso ponto de partida é a afirmação de que Deus é o Criador do Universo e da vida. Embora consideremos que os avanços científicos possam nos ajudar a compreender melhor o texto bíblico, admitimos que encontrar uma compatibilidade total entre as duas posturas, além de não ser uma tarefa fácil, não é nosso propósito. O Rabino Samuel David Luzzatto (Itália, 1800-1865), também conhecido pelo acrônimo Shadal, assim escreve na introdução de seu comentário sobre a Torá:
"A intenção da Torá não é a de nos prover de informações científicas ou de detalhes que pertencem ao campo das ciências naturais, mas sim, de orientar nossos corações nos caminhos da justiça e da retidão, e fortalecer no espírito dos seres humanos a fé na unidade de Deus e a certeza de Sua intervenção nos assuntos humanos (hashgachá)."
A Torá não foi entregue somente a pessoas de alto nível intelectual, mas a todos os seres humanos e, da mesma forma, ela não expôs o tema da recompensa e do castigo sob uma forma filosófica ou sofisticada, mas sim, numa linguagem acessível a todos, mesmo que isto tenha conduzido por vezes a um antropomorfismo, como acontece no versículo 6:6 do Gênesis: "E o Eterno Se arrependeu de ter feito o homem na Terra, e isto pesou em Seu coração." A narração da criação do mundo não está escrita de forma filosófica ou científica. Os nossos sábios explicam que "é impossível revelar os mecanismos da Criação do Mundo a um ser humano". Assim sendo, não é pertinente considerar as palavras da Torá fora de seu contexto a fim de torná-las compatíveis com as teorias atuais das ciências naturais.
Um estudioso da Torá não deve dar ensejo a que se questione a origem Divina da Torá pelo fato de constar em seu texto algo incompatível com o conhecimento atual da Ciência. Seria prazeroso demonstrar que as afirmações da Ciência sobre o início do nosso planeta são totalmente compatíveis com o que a Torá nos ensina sobre esse tema. Afinal, a Torá e a Criação são duas obras do mesmo Autor. Entretanto, é preciso lembrar que o ponto de partida dos cientistas é a afirmação da autocriação do Universo e, assim sendo, suas divergências com o relato bíblico não são conciliáveis. Porém, se tomarmos como ponto de partida o ato da Criação tal como é narrado na Torá e como é definido pela tradição rabínica, não nos parece haver nesta narração, em termos gerais, qualquer afirmação incompatível com o atual conhecimento científico.
Quero deixar claro que, diferentemente de alguns outros estudiosos judeus que se ocuparam do tema, não busco ajustar o texto bíblico ou sua compreensão ao atual estágio de conhecimento da Ciência.
Muitos citarão o Maimônides (Rabino Moshe ben Maimon, Espanha/Egito, 1135-1204) e sua aparente tendência a reinterpretar o primeiro versículo da Torá para que o relato da Criação bíblica se tornasse compatível com a ideia aristotélica do Universo eterno e com a ideia platônica de uma matéria preexistente. Estes esforços exegéticos talvez se justificassem se estivéssemos lidando com um conhecimento científico sólido e irrefutável. Isto, porém, não ocorre nos campos da Cosmologia e Biologia Evolutiva, nos quais é preciso lidar com rochas e ossos, que são interpretados de forma subjetiva, aberta ao debate e exposta ao progresso, sendo que as teorias daí derivadas evoluíram notavelmente nos últimos anos, havendo ainda indicações de que vão continuar evoluindo e se transformando continuamente.
Um exemplo desta afirmação, apresentado em meu livro Decifrando a Criação, foi a aceitação, após 25 séculos de negação, de que o Cosmos não é eterno, ao ter sido apresentado um novo entendimento, verdadeiramente revolucionário de que o Universo teve um momento inicial ao qual denominaram Big Bang.
Durante 2500 anos, muitas pessoas que professavam a fé bíblica - judeus e gentios - insistiam, certamente com boas intenções, que era preciso reavaliar suas crenças e aceitar que a Torá, que começa postulando o início do Universo, deveria ser reinterpretada à luz das "modernas teorias científicas". O passar do tempo mostrou a veracidade do relato bíblico. As duas obras do Criador, a Criação e a Torá, não coincidiam, neste caso, por não haver exatidão na observação que os astrônomos faziam do Universo e, consequentemente, não se aperceberem de sua constante expansão.
Talvez possamos hoje, se reinterpretarmos o texto bíblico, obter algum tipo de resposta para muitos outros desencontros entre a Ciência moderna e a religião. Porém, seria provavelmente um trabalho vão ante a eventual evolução da Ciência, que poderia vir a mostrar a nossos filhos ou netos novas respostas que, estas sim, coincidiriam com o relato bíblico e que, até então, não havíamos conseguido perceber.