PREFÁCIO
Nas últimas décadas, doenças fatais do passado se tornaram curáveis. Doentes considerados totalmente desabilitados foram reintegrados à vida e ao convívio social. Tudo graças ao extraordinário avanço da tecnologia de ponta, aperfeiçoamento dos métodos diagnósticos e formas de terapia. O avanço no conhecimento da Biologia celular e molecular e da genética mudou completamente a perspectiva de nossas vidas.
Resta saber se a sociedade, como um todo, tem a mesma admiração pelos médicos como tem pelo modernismo da medicina, principalmente no que tange à relação médico-paciente. O declínio do respeito aos médicos se deve ao modelo reducionista instilado nos estudantes nos bancos acadêmicos onde aprendem a ver o ser humano como uma complexa usina bioquímica, às vezes depositário de órgãos disfuncionais, que reagem a algumas aplicações técnicas. A nosso ver, a medicina perdeu o rumo, senão a alma.
O pacto milenar entre médico e paciente desapareceu, salvo poucas e honrosas exceções.
Sim. A arte de "ouvir" o paciente foi superada pela tecnologia. Não se vê mais o "doente", mas sim a fragmentação do corpo humano entendido como doença tal e qual. Os pacientes se vêem maravilhados com o poder da tecnologia,mas lamentam a relação médico-paciente perdida.
Em sentidas palavras escreveu o ensaísta Anatole Broyard, vitimado pelo câncer de próstata (The New York Times Magazine, 26/08/1990):
"Eu não tomaria muito tempo do meu médico; desejaria apenas que pensasse sobre minha situação. Talvez por uns cinco minutos, e que por um breve tempo se vinculasse a mim, esquadrinhando-me a alma tão bem como o meu corpo, para entender o meu mal. Assim como examina os meus exames de sangue e dos ossos, gostaria que meu médico me examinasse considerando o meu espírito tanto quanto a minha próstata. Caso contrário, não sou mais que uma doença."
O livro do Professor Auro del Giglio é de uma clareza cristalina, não faz críticas ao status quo. Analisa, com prudência e elegância, as causas da atual relação médico-paciente, trazendo para o leitor conceitos e citações filosóficas numa linguagem fácil e agradável, que nos enche de esperança de que, um dia, voltaremos a ser mais humanos.
Basicamente, o livro é apresentado em duas partes - Medicina e Humanismo e Medicina e Judaísmo, subdivididos em vários tópicos.
A relação médico-paciente é ricamente discutida sob a luz e os conceitos de grandes mestres, como William Osler ("A prática da medicina é uma arte, não um negócio...").
A relação Eu-Tu, de Martin Buber, é abordada plenamente, e a importância do sofrimento do paciente frente a postura médica é enfatizada.
Discorre com propriedade sobre a medicina baseada em evidência e seu valor prático, para fugir um pouco do "Trialismo".
É relevante a citação de Cardarelli (1922): "As teorias podem morrer, podem mudar, mas a observação não morre jamais", o que, segundo Auro, se constitui em ferramenta jamais superada.
A Oncologia (do passado ao futuro) é apresentada com detalhes, indicando as mais recentes descobertas, tais como anticorpos monoclonais - o anti CD 20 para tratamento de linfomas -, e delineia as perspectivas futuras. É notável a grande admiração do autor pelo mestre William Osler. O leitor encontrará no livro uma grande fonte referencial dele e de outros grandes mestres da medicina.
Auro apresenta o conceito de exaustão ("burn out"), tão frequente entre os oncologistas, e suas prováveis causas e implicações.
A segunda parte - Medicina e Judaísmo - é o ponto alto da obra. Nela, Auro insere a influência do Judaísmo, fazendo um link com a medicina Hiporática (500 AEC), mostrando as preocupações do Judaísmo com a saúde desde os tempos bíblicos ao citar que, das 613 obrigações a serem cumpridas no Judaísmo, 213 se relacionam à saúde. Mas o grande destaque é a dissertação sobre os cuidados médicos na terminalidade da vida em pacientes portadores de câncer sob a ótica de grandes talmudistas e eruditos, tais como o Rabino Moshe Feinstein, as condutas adequadas e/ou não permitidas, e nos traz finalmente à postura do Judaísmo e da Ciência em relação à Eutanásia (salvo raras exceções).
A contribuição de Maimônides à medicina é um ponto marcante nesta obra, onde Auro destaca sua sólida formação humanista, judaica e laica
Enfim, podemos dizer, com certeza, que este livro atingirá seus objetivos e o leitor terá a satisfação de rever conceitos relevantes do dia a dia da prática médica, assim como a oportunidade de identificar a genial figura médica e humanista do autor.
Prof. Dr. Abraham Pfeferman
Professor Adjunto de Clínica Médica e Cardiologia da Escola Paulista de Medicina/UNIFESP, e cardiologista do Hospital Israelita Albert Einstein