PRÓLOGO
Um grupo de estudantes universitários judeus veio me procurar. Estavam planejando seu curso para o ano seguinte e perguntaram se eu poderia sugerir um tema.
Pensei por um momento e disse: Hoje em dia, há um grande número de judeus fazendo coisas interessantes e significativas. São artistas e acadêmicos, juízes e médicos, políticos e líderes de organizações voluntárias, escritores e jornalistas. O trabalho que desenvolvem deve suscitar, sob uma série de aspectos, questões importantes sobre o que fazer e como viver. Escrevam e peçam um breve depoimento sobre o que ser judeu significa para eles e de que maneira este fato faz diferença em suas vidas. Vocês terão então uma série de textos para comparar com alguns dos testemunhos clássicos que fazem parte da nossa tradição. Assim, poderão ouvir as vozes do passado e do presente e, a partir daí, estabelecer discussões fascinantes sobre o que ser judeu significa para vocês.
O grupo se entusiasmou com a ideia e, durante as semanas seguintes, trocamos ideias sobre a quem procurar e como redigir as questões. Meses depois, não tendo ouvido mais nada a respeito do projeto, perguntei sobre seu progresso. Só então os estudantes me contaram que, das quase duzentas cartas enviadas, apenas seis respostas foram recebidas. Aqui estão três delas.
A primeira veio de um famoso acadêmico judeu:
"Sou incapaz de escrever até mesmo um curto parágrafo sobre o que significa para mim ser judeu. Tudo em que consigo pensar é que sou judeu exatamente da mesma forma que tenho duas pernas, dois braços, dois olhos etc. É apenas um atributo, meu por direito, parte de uma descrição primária de quem sou. Não me sinto orgulhoso ou constrangido a respeito. Sou apenas um judeu, e nunca me ocorreu que talvez pudesse ser outra coisa. Tentar responder à pergunta "Por que sou judeu" seria como tentar explicar por que estou vivo, ou por que tenho duas pernas."
A segunda veio de um consagrado escritor:
"Ser judeu é uma fonte de conforto e segurança para mim, e dá origem à sensação de pertencer a uma comunidade antiga e orgulhosa. Mas tudo se deve ao fato de eu ter sido criado como judeu. Não tenho dúvida de que me sentiria da mesma forma se tivesse sido criado como um católico, protestante ou budista."
A terceira carta veio de um israelense, figura pública de destaque tanto em Israel quanto na Diáspora:
"Uma das definições de judaísmo mais interessantes que conheço é a que ouvi há muitos anos de um jovem israelense. Judaísmo, ele disse, é uma doença hereditária. Você a recebe de seus pais e a transmite a seus filhos. "E por que seria uma doença?", perguntei. "Porque não foram poucos os que ela matou", respondeu."
Os estudantes ficaram desapontados e, para ser honesto, eu também. Ali estavam três judeus, nenhum dos quais hostil ao judaísmo, dois deles religiosos praticantes e o terceiro, famoso por defender alguns dos valores mais caros ao judaísmo. Cada um havia se dado ao trabalho de redigir uma mensagem para a nova geração. Mas cada mensagem era estranhamente ambivalente. Para os dois primeiros, ser judeu não passava de um mero acidente de nascença. Para o terceiro, era ainda pior do que isto - ser judeu era uma doença. Os estudantes sentiram, e eu concordei, que não havia naquelas respostas nada que pudesse servir de base para um curso universitário.
Na primeira ocasião em que me dirigi a um grupo de estudantes depois disto, li as três respostas. E pedi que escutassem outras vozes que refletiram sobre o judaísmo e o povo judeu. Li para eles as palavras escritas pelo grande novelista russo Leon Tolstoy:
"O judeu é aquele ser sagrado que trouxe dos céus o fogo eterno com o qual tem iluminado o mundo inteiro. Ele é a nascente, o manancial, a fonte religiosa da qual todos os outros povos sorveram suas crenças e suas religiões."
E as palavras do presidente norte-americano John Adams, datadas do século 19:
"Insisto em afirmar que os hebreus fizeram mais do que qualquer outra nação para civilizar os homens. Se eu fosse um ateísta, e acreditasse no determinismo cego e eterno, ainda assim eu acreditaria que este mesmo determinismo teria feito dos judeus o instrumento mais decisivo para educar as nações. Se eu fosse um ateísta da outra corrente, aquela que acredita ou finge acreditar que tudo é função do acaso, eu acreditaria que o acaso teria determinado aos judeus que preservassem e propagassem para toda a humanidade a doutrina de um soberano onipotente, supremo, sábio, inteligente, que eu acredito ser o princípio grandioso e essencial de toda a moralidade e, consequentemente, de toda a civilização."
Também li a seguinte passagem, escrita pelo historiador contemporâneo Paul Johnson:
"Todas as grandes descobertas conceituais do intelecto parecem óbvias e inevitáveis depois de reveladas, mas um talento especial é necessário para formulá-las pela primeira vez. Os judeus têm este talento. A eles, nós devemos a ideia da igualdade perante a lei Divina e dos homens; a ideia da santidade da vida e da dignidade do ser humano; da consciência individual e, consequentemente, da redenção pessoal; da consciência coletiva e, portanto, da responsabilidade social; da paz como um ideal abstrato e do amor como o fundamento da justiça, e muitas outras ideias que constituem o mobiliário moral básico da mente humana. Sem os judeus, poderíamos habitar um lugar muito mais vazio."
Por fim, lancei mão do que disse William Rees-Mogg, economista e antigo editor do "The Times" de Londres:
"Uma das contribuições da cultura judaica ao cristianismo é que ela ensinou cristãos a pensarem como judeus, e dificilmente pode-se dizer de um homem moderno que ele tenha aprendido a pensar se não pensar como se fosse um judeu."
Eram elogios surpreendentes, evidentemente prestados por vozes solidárias. Mas a ironia é que se eu tivesse escolhido vozes não solidárias - como as dos antissemitas -, elas teriam atribuído um poder ainda maior aos judeus, os quais julgam exercer uma influência quase total sobre a mídia, a economia e a política do Ocidente.
Ali estavam testemunhos conflitantes e, refletindo sobre eles, vi a mim mesmo frente não a um, mas a dois mistérios: Quem foram e quem são estas pessoas que tão grande influência exerceram sobre a civilização ocidental? E qual é o porquê deste estranho contraste entre o que judeus e não judeus têm a dizer sobre elas? Por que gentios viram nos judeus e no judaísmo algo de extraordinário, enquanto judeus não pouparam esforços para negar qualquer distinção, empenhando-se em classificar a si mesmos como pessoas comuns, ordinárias, como se isto fosse um mérito raro e especial? Ao menos um fato pude constatar: O de que há confusão e desmoralização no coração da identidade judaica contemporânea.
Mas há também a indicação de algo vasto e impressionante. Uma outra citação me veio à mente, uma citação do escritor judeu norte-americano Milton Himmelfarb: "Cada judeu sabe o quão completamente ordinário ele é. Mas, em conjunto, parece que nos envolvemos em acontecimentos grandiosos e inexplicáveis... O número de judeus no mundo é menor do que um pequeno erro estatístico no recenseamento da China. Somos, no entanto, maiores do que nossos números. Coisas grandiosas acontecem à nossa volta e a nós mesmos."
O que faz com que este povo tão "completamente ordinário" esteja volta e meia envolvido em "acontecimentos grandiosos e inexplicáveis"? E por que são tantos os judeus que não se dão conta disto? Sem perceber, comecei a pensar em algumas das questões mais desconcertantes sobre nossa existência, passada e presente. Descobri como tornou-se difícil para os judeus explicarem por que são judeus e porque, se este for o caso, desejam que a história judaica se perpetue. Foi o ponto de partida para uma jornada que me levaria ao autoconhecimento.
"As pessoas me perguntam por que sou judeu." Com estas palavras, o escritor francês Edmond Fleg começou seu livro 'Why I am a Jew", publicado em 1927. Mais de setenta anos depois, senti necessidade de fazer o mesmo.
Fleg escreveu seu livro num momento em que o judaísmo estava sofrendo um abandono em larga escala. Eu também. Em outras épocas, questões como as que hoje coloco em pauta se revelariam desnecessárias. Nossos ancestrais eram judeus porque seus pais eram judeus, bem como seus avós e os avós de seus avós, desde o início dos tempos. Assim sobreviveram os judeus e o judaísmo através dos séculos. Em grande parte, isto é o que significa ser judeu: herdar uma religião daqueles que nos antecederam, segui-la e transmiti-la aos que vêm depois de nós. Ser judeu é ser um dos elos de uma corrente que liga as gerações.
Mas há ocasiões em que a corrente começa a se partir, e a continuidade do judaísmo e do povo judeu deixa de ser uma certeza. Fleg viveu uma delas. Nós estamos vivendo outra. As perguntas são inevitáveis. Quem somos? De que história fazemos parte? Por que nossos ancestrais eram tão determinados quanto à continuidade? O que fazia sentido para eles faz sentido para nós?
Há mais de três mil anos, Moisés fez um pedido que ecoou através do tempo. Falando aos israelitas que estavam prestes a entrar na terra prometida, ele disse: "E as ensinarás diligentemente a teus filhos e falarás a respeito das mesmas quando estiveres sentado em tua casa e quando estiveres andando pelo teu caminho; quanto te deitares e quando te levantares." Moisés foi o líder de um povo pequeno e machucado. Seus integrantes tinham sido escravos; agora, eram livres. Haviam partido em uma longa e tortuosa jornada pelo deserto, mas ainda não tinham chegado ao seu destino.
Não constituíam um povo que inspirava confiança. Eram brigões, ingratos, indecisos e, às vezes, desleais. Apesar de tudo, Moisés percebeu que algo de grandioso tinha acontecido a eles, algo cujo significado iria muito além daquele momento, daquele lugar e daquelas pessoas. Ele acreditou ? não, ele soube ? que aquele povo levaria adiante uma mensagem eterna, uma mensagem que afetaria a si mesmo e a toda a civilização. Mas isto, somente se gerações sucessivas de judeus assumissem a responsabilidade de transmitir suas crenças aos seus filhos e aos filhos de seus filhos.
Imediatamente antes de proferir as palavras acima, Moisés fez ao povo um pedido ainda mais pungente: "E amarás o Eterno, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu poder." O Rabino Moisés Alshech, comentarista do século 16, estava seguramente correto quando disse que estes dois versículos estão interligados. Só podemos passar aos nossos filhos aquilo que nós mesmos amamos. Não podemos ordenar a eles que sejam judeus. Não podemos privá-los da escolha, nem tampouco transformá-los em clones. A única coisa que, sim, temos a condição de fazer é mostrar a eles que nós acreditamos, e deixar que vejam a beleza da nossa maneira de viver. Como disse o poeta inglês Wordsworth: "O que nós amamos, outros virão a amar, e nós lhes mostraremos como."
Eu não posso dizer aos meus filhos e netos o que eles devem ser. Apenas eles mesmos podem fazer esta escolha, e eu os abençoo naquilo que decidirem. Mas posso contar-lhes de onde viemos, e para onde nossos ancestrais viajavam, e porque julgavam importante que seus filhos prosseguissem a jornada. Esta é a nossa história, ainda em curso. E há um capítulo que somente eles podem escrever.