Prefácio à Edição Brasileira
“Eu sou o Eterno, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa dos escravos.”
Êxodo 20:2
Os Dez Mandamentos foram uma revelação única na história da humanidade. Ouvida por todo o povo judeu aos pés do monte Sinai, a voz de Deus continua a ecoar mais forte do que nunca em nossos almas, geração após geração, alimentando a fé inabalável que arde em nossos corações desde aquele momento. Ao longo de todas as jornadas que empreendemos, levamos conosco a mensagem eterna da crença no Deus único, expressa no versículo acima. Por ela, estivemos prontos a morrer; por ela, atravessamos incólumes água e fogo e, graças a ela, sobrevivemos e viveremos para sempre – em nossos filhos e nos filhos de nossos filhos, até o final dos tempos. É o nosso legado maior: a fé no Criador.
Não foram poucos e nem amenos os obstáculos que o judaísmo enfrentou ao longo dos séculos e milênios.
A todos eles, nós, judeus, respondemos de cabeça erguida. “O Cuzarí”, esta grandiosa obra clássica do século XI, ocupa lugar de honra na galeria de respostas que, com orgulho e humildade, levamos aos demais povos da terra. Mas, acima de tudo, ela adquiriu valor inestimável como instrumento de autoconhecimento, tarefa que a riqueza de nossa trajetória torna obrigatória, essencial. As ideias e ensinamentos contidos em suas páginas falam em profundidade sobre quem somos e o papel que nos cabe desempenhar em nome do pacto que fizemos com o Eterno.
A importância de uma obra como esta toma proporções ainda maiores em um momento como o que tentamos transpor atualmente. A nova geração encontra-se, como nunca, exposta a apelos e influências destinadas a distanciá-la de sua preciosa herança, e é dever sagrado de cada um de nós impedir que isto aconteça. E “O Cuzarí”, tão poderoso e verdadeiro hoje quanto na época em que foi escrito, é um dos clássicos judaicos que contém todos os elementos capazes de reafirmar a beleza dos valores e a grandeza de nossa tradição.
Sobre o Autor
O Rabino Iehuda ben Shemuel Halevi (conhecido sob o acrônimo de Rihal), precursor da historiologia (filosofia da história), consagrou-se como o poeta da nação judaica.
O Rihal nasceu em 1075 em Toledo, norte da Espanha, numa época em que a política local passava por drásticas mudanças em função da consolidação do reinado cristão de Castilha, que chegou ao ápice em 1085 com a conquista da cidade natal do nosso poeta. Uma das consequências deste fato foi a transferência de grande parcela da comunidade para o norte. Toledo transformou-se em centro da cultura judaica, onde floresceram luminares da erudição, como os Rabinos Abraham ibn Ezra e Iehudá Al-Harizi, entre outros, até Maimônides, o Rambam, devolver o brilho ao sul da Espanha, a partir da cidade de Córdova.
Pouco sabemos sobre a infância e os estudos do Rihal, mas é evidente o fantástico domínio que tinha sobre o Talmud e o Tanach, flagrante nas associações e citações presentes em seus livros e poemas – ele compôs mais de mil poemas e cânticos ao longo de sua vida. Torna-se claro, também, o sólido conhecimento que tinha da poesia e filosofia árabes, uma vez que delas lançou mão com raro talento nas respostas que compõem sua obra-prima, “O Cuzarí”.
Durante os anos de sua juventude, o Rihal peregrinou pelos grandes centros de estudo da Torá situados no sul da Espanha. Foi aluno na Ieshivá do Rabino Isaac Alfassi, conhecido pelo acrônimo de Rif, e amigo do grande sábio Rabino Iossef ibn Migash. Por ocasião do falecimento deste, escreveu um comovente discurso fúnebre.
O Rihal continuou a viajar em busca do saber, e suas jornadas pela Península Ibérica e norte da África permitiram-lhe conhecer de perto a situação trágica do povo de Israel, pressionado entre os cristãos de Edom e os muçulmanos de Ismael – “entre o martelo e a bigorna”. O sofrimento que testemunhou marcou indelevelmente sua alma para sempre.
O dom poético do Rihal era único, especial, e viria a influenciar de maneira decisiva os rumos de sua vida. Conviveu com grupos que uniam a Torá à cultura geral e à nobreza, e desenvolveu sua poesia a ponto de vencer um concurso que tinha a obra do famoso autor Moisés ibn Ezra como tema – o desafio era “imitar” uma das poesias do mestre.
Foi assim que o jovem Iehuda Halevi, o nosso Rihal, conheceu a família Ibn Ezra, uma das mais ricas e influentes da Espanha na época. Acabou por mudar-se para Granada, sede da casa da importante família e, entre outros benefícios, passou a experimentar uma situação financeira mais confortável do que aquela que conhecera até então. De Granada, seguiu para Córdova, onde estudou medicina. Mais tarde, regressou a Toledo, casou-se e teve uma única filha. Conta uma tradição que o Rihal foi genro do Rabino Abraham ibn Ezra.
Em uma etapa posterior, estabeleceu-se com a família na cidade de Córdova. Pode-se constatar, a partir da alegria e da paz interior presentes nas frases, versos e entrelinhas de seus escritos da época, que o Rihal levava então uma vida tranquila. Nem por um momento, porém, esqueceu-se da situação de seu povo. A ele, às suas provações e à sua força sem igual, dedicou as mais belas poesias que compôs.
A situação dos judeus na Península Ibérica e norte da África torna-se cada vez mais insustentável. O Rihal conhece e sente no âmago do seu ser as graves ameaças à nação judaica: de um lado, as Cruzadas; de outro, as perseguições nos paises islâmicos. Chora a destruição das comunidades disputadas por cristãos e muçulmanos, e percebe, com rara clareza, a fragilidade e falta de segurança dos judeus na Espanha. Mais do que isto: vê de perto a gradual deterioração dos preciosos valores espirituais do nosso povo, apesar do luxo e da beleza superficiais.
O estado de coisas vigente afeta o espírito do grande poeta. Edon e Ismael guerreiam para dividir o mundo entre si, e o judaísmo é aniquilado batalha após batalha. Nelas, o Rihal identifica os sinais para que o povo judeu desperte e deixe a Diáspora. Ele sente especialmente o sofrimento da Shechiná – a revelação da Divindade – e começa a dar asas ao seu próprio sonho de retornar a Tsión.
Nenhum outro poeta judeu jamais expressaria com maior exatidão o sofrimento de um povo que acreditava ter sido temporariamente abandonado por Deus e que, ao mesmo tempo, lutava para manter vivas sua fé e esperança.
Faz parte de um dos belíssimos poemas do Rihal um verso onde diz que seu corpo estava no Ocidente, mas seu coração, no Oriente.
Ao aproximar-se da velhice, é profundamente abalado pelo falecimento de sua esposa. Nos últimos versos que escreve, fala da consciência do pecado, referindo-se a uma possível dedicação excessiva à poesia e às reuniões culturais que manteve durante a juventude – atitude e eventos que dificilmente podem ser definidos como pecados – e declara que, a partir daquele momento, se dedicará somente à purificação da alma e do pensamento (O Cuzarí 2:80).
Seu desejo de ir a Tsión, beijar suas pedras e contemplar o sítio do Templo destruído aumenta sensivelmente. Sonha em caminhar pelos lugares onde Deus Se revelou aos profetas. Ele então toma a decisão de partir, deixando para trás a confortável vida na Espanha, a filha, o neto, os alunos, e dirige-se à Terra de Israel. De nada adiantam os alertas da família e dos parentes sobre os perigos da viagem em idade tão avançada. Os olhos do Rihal estão voltados unicamente para Tsión.
Ele sai da Espanha aproximadamente no ano 1140. Sua jornada rumo à Terra de Israel rendeu ao nosso povo as mais belas poesias sobre o anseio histórico por Tsión e Jerusalém, entre elas “Tsión Halo Tishali”, recitada em algumas comunidades em Tishá Beav, o dia que assinala a destruição dos dois Templos sagrados. No caminho, passa por Alexandria e pelo Cairo, no Egito, onde é aclamado pelas comunidades locais. Encontra seguidores fiéis que, por sua vez, também tentam impedi-lo de prosseguir, em virtude dos riscos que terá de enfrentar. Mas o sonho e a saudade falam mais alto, e o nosso poeta segue viagem.
Uma história tão fantástica quanto terrível (citada no livro Shalshelet Hacabalá, de Guedalia ibn Hia) conta que, logo ao chegar aos portões de Jerusalém e vislumbrar a Cidade Santa em sua destruição, o Rihal rasga suas vestes, curva-se até o chão e recita a famosa poesia acima mencionada. Então, um cavaleiro árabe que assistia à cena, invejando a profunda devoção que presencia, faz seu cavalo pisotear o poeta – até a morte.
Sua Visão sobre o Povo de Israel
O Rabino Iehuda ben Shemuel Halevi desenvolve sua vivência religiosa sobre fundamentos que mesclam história e nacionalismo. O caráter especial do Povo de Israel e de sua história como revelações da Divindade, e o significado amplo de Tsión enquanto único local onde o povo judeu pode cumprir sua tarefa, são os principais temas de toda a sua obra.
Da mesma forma que o Maharal de Praga, o Rihal vê como centro, como ponto primeiro da escolha Divina, a nação e o espírito do povo, e não o indivíduo em particular. Conhecer a grandeza de Am Israel e seu papel na história da humanidade é, segundo sua perspectiva, tão ou mais importante do que compreender as regras morais que regem a sociedade dos homens.
“O povo de Israel entre as nações é como o coração entre os órgãos do corpo; é ele que mais sente as dores, mas também é ele o órgão mais importante e vital entre todos.” Esta frase de sua autoria não enfatiza somente a importância do coração: assim como os demais componentes do corpo humano não sobrevivem sem o coração, também o coração não sobrevive sozinho. Israel é o povo que revela a vontade de Deus. Tem por tarefa e objetivo ser o coração da humanidade, uma fonte de vida espiritual para os outros povos.
O Relacionamento com a Filosofia
Para o Rihal, a fé – Emuná – é a ligação existencial entre o homem e Deus, e encontra-se acima de qualquer limite conhecido. Embora não negue a necessidade do uso do intelecto em determinadas instâncias, ele decididamente desconsidera a filosofia enquanto caminho que leva ao conhecimento de Deus.
O mestre e poeta mostra que a Revelação Divina começa exatamente no ponto onde termina o alcance do pensamento humano. “O Cuzarí” nos ensina que a Revelação Divina provém do infinito, de um lugar situado muito além daquele que a nossa pequena massa cinzenta pode atingir, e é justamente por isto que sua grandeza não encontra paralelo no universo das proporções humanas.
Por outro lado, ele não rejeita a capacidade de raciocínio do homem, como explicamos acima, e afirma que não existe nada na Torá que contradiga a lógica. Mas diz, também, que não é dentro dos limites da lógica que se pode encontrar o infinito. Ensina que a lógica pode apenas nos ajudar a construir a moldura intelectual para a verdadeira compreensão da Revelação Divina. “O deus de Aristóteles não é o Deus de Abrahão” – esta é a verdade que pulsa no coração do Rihal.
É sabido que a filosofia judaica talvez tenha sido influenciada pela filosofia geral dos povos. Mas somente no que tange à forma, e não quanto ao seu conteúdo. Se um deus criado pela especulação filosófica está centrado em si mesmo, limitado pelas leis impostas pela natureza, o Deus de Israel, que Se revelou para o povo em momentos únicos de sua história – na saída do Egito e aos pés do monte Sinai – é um Deus vivo, sempre presente, que tem todas as leis em Suas mãos. É um Deus que possibilita ao homem se elevar e entrar em contato diretamente com Ele por meio da profecia, o caminho que leva aos Céus. Mas, diz o Rihal, não é o homem que constrói a escada até os céus – é Deus que faz descer dos céus uma escada para que o homem possa galgá-la.
Menções à medicina, profissão de Halevi, também podem ser encontradas em sua obra, e percebe-se que a ciência influenciou sua rejeição à filosofia especulativa. Esta postura intelectual levou-o a criticar as construções abstratas típicas de sua época, e ele não teve constrangimento algum em apontar seu relativismo em diversas ocasiões.
Sobre Estilo e Enredo
A moldura, ou o estilo no qual “O Cuzarí” foi escrito, distingue-se também pela originalidade. Pode-se afirmar, com toda convicção, que se trata de uma obra de arte literária.
O Rihal baseou-se num fato histórico ocorrido aproxi-madamente 400 anos antes de sua época (O Cuzarí 1:1), quando o rei de um povo que habitava as margens do mar Cáspio converteu-se ao judaísmo, juntamente com seu povo. Este fato é mencionado no Sêfer Hacabalá, escrito pelo primeiro Raavad, e nos capítulos 3 e 4 do Sêfer Iuchassin. Deste, consta uma carta enviada por Iossef, rei dos cazáres, ao sábio Chasdai ibn Shaprut, que fala sobre descendentes daquele povo que estariam entre os sábios da Torá de Tortela.
A fórmula empregada pelo Rihal beneficia o leitor, facilitando tanto quanto possível a compreensão de tão rico e profundo texto: o rei dos cazáres formula perguntas ao sábios da época em sua busca por uma religião e deles recebe respostas, estabelecendo-se assim terreno propício à discussão. Na breve introdução que faz, o autor usa a expressão “Vehamaskilim iavínu”, que significa “e os sábios entenderão”. Por meio destas palavras, indica-nos que não se trata de um testemunho histórico do antigo diálogo, mas, sim, que o diálogo foi somente a forma literária escolhida para conter “O Cuzarí”.
Uma após outra, perguntas e respostas encerram verdadeiros oceanos de símbolos e ideias, e é imprescindível que o leitor mergulhe por inteiro em cada detalhe, por mínimo que lhe pareça, para poder extrair do livro toda sua grandeza. Trama e diálogos são extremamente envolventes, mas é essencial estar atento às inúmeras mensagens do autor transmitidas não apenas por meio do conteúdo. A ordem de abordagem dos diversos assuntos, a maneira como o rei elabora as perguntas, os exemplos que servem de ilustração – tudo neste livro tem um porquê, um significado, e convida à reflexão. Uma característica curiosa de “O Cuzarí”: nele, os conhecedores de dilemas filosóficos encontrarão respostas e direção para muitas de suas dúvidas, enquanto o leigo terá a sensação de estar lendo uma densa e interessante peça teatral.
Vale notar que, na Introdução, o autor narra o sonho do rei com um anjo que lhe diz: “Tuas intenções são bem-aceitas pelo Criador, mas não tuas ações.” Surgem as inevitáveis perguntas: por que esta afirmação aparece em um sonho? E por que o rei não tem noção do que ela implica quando acordado? A valiosa mensagem do anjo – de que não basta ser um bom homem e ter boas intenções, pois os atos são igualmente importantes – pode soar um tanto sobrenatural para alguns. Para os judeus, no entato, ela é totalmente familiar. Disseminada e defendida pela Halachá, o código das leis judaicas, é uma das verdades que nos foi ensinada no monte Sinai. Pouco encontrada em outras crenças e culturas, o insight que a narração do sonho provoca se assemelharia à sensação produzida pelo “sopro” de um anjo – daí o uso da figura pelo Rihal.
Ainda sobre a mesma narrativa: também poderíamos questionar por que o anjo não teria apontado ao rei o caminho correto. Da omissão, infere-se que a fé deve ser buscada e estudada com afinco. Aqueles que a procuram com empenho e determinação obterão a bênção Divina e a encontrão. Talvez os que tenham vindo ao mundo em meio a um ambiente mais religioso não precisem procurá-la tão longe, mas isto não significa que a Emuná não deva ser estudada por todos, sem exceção. Mensagens inestimáveis como estas podem ser extraídas de cada página. Mas, antes, devem ser identificadas pelo leitor, e isto pede dedicação absoluta ao texto.
O questionamento do rei sempre encaminha o diálogo em direção ao tema particular que o Rihal deseja desenvolver naquele momento. Assim se dá com as perguntas sobre o pecado do bezerro de ouro e sobre a idade do mundo. Elas levam de forma indireta à explicação mais profunda sobre Segulá, a essência do povo de Israel, e acabam por mostrar que os pecados atingem somente a superfície, sem jamais mudar o caráter sagrado da essência do povo judeu. Outro item de orientação para a leitura: sempre que dois assuntos aparecerem em ordem sequencial, deve-se buscar a ligação entre eles – como na pergunta sobre os convertidos, que tem por finalidade ampliar a exploração do tema da Segulá.
No início de sua pesquisa, o rei convoca um representante dos filósofos – que influenciaram muitos pensadores da época [em algumas edições não censuradas do livro, ele convoca mais tarde um sábio persa] –, um muçulmano e um cristão. As respostas são feitas de forma sintética, mas comprovam o conhecimento do autor sobre os princípios abordados. Passagens como estas e as ideias que contém fazem parte da obra justamente porque “O Cuzarí” é muito mais do que uma “apologia”, uma explicação como que “devida” às outras religiões. Como dissemos no início da presente Introdução, o livro é uma preciosa ferramenta de autoconhecimento para os próprios judeus, mais do que um mero livro apologético que discute as diferenças entre as religiões. Uma curiosidade adicional: já houve sugestões para que o leitor ignorasse a Introdução do Autor e fosse diretamente ao parágrafo 10, onde o rei fala sobre o judaísmo.
A forma como o Rihal apresenta o que equivale a um “cartão de visita” do judaísmo é primorosa. Atônito, o rei discute a apresentação inicial do Sábio, que limita o conhecimento de Deus à Sua Revelação aos nossos antepassados, sem falar da Sua magnitude, da Criação do mundo etc. O rei chega a se arrepender por consultar os judeus, um povo perseguido e sofrido. Este era, por sinal, um ideal cristão: humilhar o povo judeu como forma de justificar seus “caminhos errados”. É justamente aí que o Rihal revela ao rei que aquilo que parece, à primeira vista, uma limitação é, na verdade, a maior virtude do judaísmo – que a Torá não nasceu de uma especulação, nem tampouco do testemunho de um ou de alguns homens. Nosso Deus é o Deus da Revelação, e todo o povo presenciou esta experiência e ouviu Sua voz num evento inédito na história da humanidade que, inclusive, chegou a servir de base para outras religiões. Segundo o Rihal, “não foi o homem que trilhou o caminho até Deus; foi Deus que veio até nós e ensinou-nos Sua vontade”.
É necessário frisar que, no início do Segundo Diálogo, o rei se converte ao judaísmo e, com ele, todo seu povo. A partir deste momento, assuntos que haviam sido tratados no Primeiro Diálogo de forma mais superficial são então aprofundados. A mensagem que podemos extrair desta constatação é que a forma teórica de apresentar o judaísmo para quem está distante dele é muito limitada, se comparada ao que se pode receber quando se é parte da nação escolhida.
Sob outro ângulo, sabemos que o aperfeiçoamento pessoal no judaísmo é alcançado sobretudo por meio do cumprimento dos mandamentos, e que aqueles que o vivenciam de forma plena podem criar um vínculo verdadeiro com o Eterno. Pode-se tentar “explicar” as cores a um deficiente visual, mas de nada adiantará, pois é impossível compreender o amarelo ou o vermelho sem possuir o sentido da visão.
O Rihal foi também, sem dúvida, um gênio da Halachá, o código das leis judaicas. Esta genialidade transparece quando, nas entrelinhas, ele aborda assuntos polêmicos e controvertidos, como a linha do tempo (o fuso horário), os limites da Terra de Israel etc. Grande parte do Terceiro Diálogo é dedicada às respostas aos caraítas. Já no Quarto e Quinto Diálogos, ele entra no campo da filosofia e aborda temas cabalísticos, como o Sêfer Ietsirá, o Livro da Criação etc.
Ideias mais elevadas, como profecia e ligação com a Divindade, são desenvolvidas pelo Rihal a partir de uma abordagem positiva. Ele fala do “estar de bem” com a vida e da alegria contida do judaísmo. Ensina que, embora a Torá prometa a recompensa principal no Olam Habá (Mundo Vindouro), aos justos e devotos é concedida parte desta recompensa ainda neste mundo, ao longo da vida. Fala do mundo físico, limitado, e da janela que o Eterno abre para os justos, permitindo que sintam a Luz Divina através dela – um prazer inigualável. Este bem-estar espiritual faz com que o judaísmo delicie aos que o experimentam por inteiro.
A alegria e o sentimento de paz em relação à vida são uma constante em todo o livro, em especial no início do Terceiro Diálogo, quando o Rihal define o Chassid, que seria o israelita ideal. Instala-se então um ar de otimismo, apesar das dores e opressões, o que justifica o subtítulo original da obra: “Livro de Argumentação e Prova em Defesa de uma Religião Desprezada”. Ao responder à pergunta do rei sobre o Chassid, o Rihal nos arrebata com uma resposta fantástica: ele descreve um homem equilibrado, em harmonia e de bom senso. O rei, então, expressa sua censura, dizendo não estar à procura de um bom administrador, mas, sim, de um homem que tenha as características de um justo. A mensagem é cristalina: o ideal não estaria nos extremos, nem na tentativa de fugir à natureza humana. O ideal é viver a vida que Deus nos deu da forma mais plena possível, buscando e cuidando de manter o equilíbrio entre físico e espírito para, assim, alcançar a paz interior.
Para finalizar, diria que “O Cuzarí” é um livro que reúne intelecto e emoção, moral e história. Mas, acima de tudo, é um livro sobre a essência da Emuná. O Rabino Iehudá Halevi nos ensina que não basta “entender” ou “sentir” o judaísmo; o fundamental é viver a fé judaica em sua plenitude.
Nissan 5763.
Rabino Raphael Shammah
Diretor da Yeshiva Or Israel College