Introdução
Pirkê Avót significa,
literalmente, "Capítulos de Avót". E o que significa Avót?
Trata-se de uma seção, de um tratado do grande compêndio da lei e do saber
judaicos, a Mishná.
Para o leitor que não esteja totalmente familiarizado com
a Mishná, talvez seja melhor começar com uma descrição introdutória
deste clássico milenar da literatura rabínica.
É crença fundamental do judaísmo histórico que a Torá nos
foi dada no Sinai. O imortal Moisés recebeu-a do Todo-Poderoso, ensinou-nos a
sua mensagem e entregou-a a nós, o seu povo. A Torá era constituída por duas
partes: a primeira delas, o Pentateuco - ou os Cinco Livros de Moisés -, que
chamamos de Torá shebichtav - a Torá Escrita. A segunda parte era a Torá
shebeal pê, a Torá Oral, que continha explicações, interpretações e
ensinamentos da Torá Escrita. A Torá shebeal pê não deveria ser
escrita; era ensinada oralmente, como um complemento da Torá Escrita.
Moisés ensinou o sagrado livro da Torá, acompanhado de
suas interpretações, a seu discípulo Josué. Este então ensinou-a aos anciãos, e
eles, por sua vez, ensinaram-na a outros. Tudo o que era transmitido oralmente
deveria ser repetido e repassado muitas vezes, assegurando-se assim que nada
seria esquecido. Esta prática recebeu o nome de Mishná, palavra que
significa um conjunto de ensinamentos e instruções
A Mishná tornou-se nossa Tradição Oral,
transmitida pelos mestres aos alunos de geração em geração. Desde o início era
proibido compilar por escrito qualquer parte desta Tradição Oral, por dois motivos.
Primeiro, para que mestres e alunos se empenhassem a fundo, sempre por muitas
horas, de modo a assegurar que tudo fosse perfeitamente lembrado e
minuciosamente compreendido. Há uma descrição do que supostamente ocorre em
algumas salas de aula nas universidades, que diz que "os apontamentos
(escritos) do professor tornam-se os apontamentos (escritos) dos alunos, sem
passar pelas mentes de nenhum deles". Com a Tradição Oral isto não podia
ocorrer, pois não havia apontamentos escritos. Eles somente existiam na mente,
na memória, no entendimento dos sábios e dos eruditos.
Em segundo lugar, temia-se que, se a Torá Oral viesse a
ser transcrita, as pessoas passariam a pensar nela como parte integrante da Torá
shebichtav e começariam a tratá-la como tal. Isto produziria uma grave
distorção, já que ambas são de natureza e caráter completamente diferentes, e
desta maneira devem ser encaradas dentro das normas do judaísmo.
Há cerca de mil e setecentos anos, porém, o Rabi Iehudá
Hanassí ("o Príncipe", presidente do Bêt Din, o Grande Tribunal e,
portanto, chefe de seu povo) deu-se conta de que sob as condições turbulentas
de sua época, não era mais possível para professores e alunos estudar e
memorizar adequadamente essa grande Tradição Oral. Pelo bem ou pelo mal, como
se diz, ela deveria ser transcrita antes que fosse completamente esquecida.
Várias gerações mais tarde, o Raban Iochanan e Resh Lakish vieram a possuir até
mesmo um volume escrito de Agadot, com ensinamentos e exposições
homiléticas que costumavam estudar aos sábados. Como justificativa, citavam um
versículo das Escrituras Sagradas que apoiava sua prática, e afirmavam a
necessidade de se ter a Tradição Oral por escrito "em vez de permitir que a
Torá fosse esquecida pelo povo de Israel". Para eles, a Torá shebeal
pê havia se tornado o próprio alicerce da Torá Escrita.
Como dissemos, o Rabi Iehudá Hanassí foi o primeiro (mas
de modo algum o último) a violar deliberadamente a proibição da transcrição da
Tradição Oral, de modo que "esta Torá não fosse esquecida por seu povo". Sua
obra original chamou-se Mishná, e é estudada até os nossos dias. As
gerações posteriores discutiram a Mishná, e seus próprios comentários e
interpretações deram origem à Guemará. Ambas as obras - a Mishná
e a Guemará - formam o Talmud.
Já nas Escrituras, a palavra Mishná tem um
significado diferente: mishnê lamélech - "o segundo em comando" - é
aquele que vem logo abaixo do rei, um tipo de vice-rei que serve como ajudante.
A partir desta acepção, a Torá Escrita seria a "primeira", a principal herança
Divina, e a Mishná, a "segunda em comando", aquela que acompanha a
"primeira" para servi-la através dos comentários e explicações que contém
A Mishná está dividida em seis seções ou ordens. A
quarta seção, Nezikim, embora trate principalmente de danos e
compensações, procedimentos judiciais e direito penal, inclui também Avót,
um tratado sobre valores éticos e conduta moral. Vale a pena nos perguntarmos
por quê.
Um dos sábios do Talmud diz: "Aquele que deseja
tornar-se um chassid piedoso e benevolente, que observe as leis de Nezikim",
assegurando-se assim em não prejudicar a outros ou deixando de efetuar um
pagamento devido. Mas outro sábio vai mais longe: "Aquele que deseja tornar-se
um chassid piedoso e benevolente, que observe os ensinamentos de Avót."Isto
significa que cuidar para não prejudicar a outros ou ressarcir danos causados
não é suficiente. Para ser um chassid, bondoso aos olhos de Deus e dos
outros seres humanos, deve-se conhecer e seguir as sábias instruções e
orientações contidas em Avót, um tratado pequeno em tamanho e vasto em
seu conteúdo de percepções e ensinamentos.
Explica-se assim a inclusão de Avót em Nezikim:
depois de aprendida a prática referente às questões de perdas e danos, a
dedicação às suas lições traria o próximo estágio de crescimento e
desenvolvimento do caráter através da Torá.
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O nome Avót significa, literalmente, "pais", e
pode parecer intrigante por que este termo dá nome ao tratado. O Rei Salomão
disse: "Escuta, meu filho, a instrução (mussár) de teu pai." No curso de
nossa história, a palavra mussár teve várias conotações, mas deriva
basicamente da mesma raiz da palavra messorá, que significa "tradição"
ou ensinamentos transmitidos de mente para mente, de coração a coração. Escutar
o mussár do "pai" implica aceitar os ensinamentos mais tradicionais
transmitidos pelos nossos sábios de abençoada memória, ensinamentos que passam
de geração em geração desde o Sinai. Este seria o significado do termo Avót.
Na linguagem da Mishná, porém, o plural Avót
e o singular Av têm frequentemente significados distintos. Em termos
como av melachá (o trabalho principal), av hatumá
(fonte original direta de impureza ritual), avót nezikín
(principais tipos danos) e binian av (o estabelecimento de uma classe ou
norma principal), a palavra av denota a fonte primeira, aquela da qual
derivam as classificações e leis secundárias. Neste sentido, o título Avót
informa que esta pequena obra contém os princípios fundamentais da ética,
aqueles que norteiam nossa vida diária, princípios dos quais podemos inferir
muitas coisas. Este conjunto de ensinamentos - talvez a própria essência do
judaísmo - realmente forme a base de nossa conduta e é "pai" de uma série de
diferentes códigos éticos e filosofias.
Ao mesmo tempo, é muito provável que Avót denote
os "pais" do judaísmo - iluminados como Hilel e Shamai, Rabi Akiva e Rabi
Tarfon, entre outros -, cerca de sessenta sábios no total, cuja sabedoria e os
ensinamentos são apresentados ao longo dos capítulos deste trabalho. Estes
sábios seriam nossos "pais", nossos patriarcas rabínicos na moral e na ética,
assim como Abrahão, Isaac e Jacob são nossos Avót na Bíblia.
Na época dos gueoním tornou-se costume nas
academias da Babilônia recitar e estudar um capítulo de Avót aos sábados
à tarde, após o serviço de Minchá, como ressalta o Rabi Amram Gaón
(século IX da era comum - e.c.) no seu sidur. Os gueonim
conheciam uma tradição segundo a qual Moisés havia passado para seu descanso
eterno num Shabat à tarde, nesse horário. Por esta razão, eles, os gueonim,
incluíram os três versículos de Tsidcatechá Tsédec - "Tua retidão é uma
retidão eterna..." - como uma oração de justificativa e aceitação da morte de
Moisés. E tornou-se um costume acompanhar o serviço de Minchá com um
capítulo de Avót para lembrá-lo, já que começa com o seu nome: "Moisés
recebeu a Torá..." O Rabi Paltoi Gaón (século IX e.c.) deu outro motivo:
O Talmud ensina que "quando um sábio morre, todas as casas de estudo e culto de
sua cidade devem cessar suas atividades". Isto sugere que, em lembrança ao
falecimento de Moisés, seria adequado não se dedicar a um estudo intensivo e
concentrado do Talmud, mas sim, aprender e rever Avót, mais fácil por
natureza.
Das academias da Babilônia, o costume se difundiu para as
comunidades judaicas de Ashkenaz - a França e a Alemanha de mais de 900
anos atrás -, e verificamos que é mencionado pelo Rabi Abraham ben Natan de
Lunel (ibn Iarchi; século XII e.c.) em seu Sefer Hamán'hig. No Col
Bo, uma obra anônima do século XIV, podemos ler que o costume variava
entre as diversas comunidades: algumas estudavam o Pirkê Avót
apenas no período entre as festas de Pêssach e Shavuót; em
outras, os capítulos eram abordados em períodos diferentes ou, então, durante o
ano todo. No Sidur Avodát Yisrael, por exemplo, publicado em Redelheim,
em 1868, o autor, dr. Seligmann Baer, enumera nada menos do que três costumes
diferentes praticados em comunidades alemãs.
Na Mishná propriamente dita, os capítulos de Avót
são apenas cinco. Mas, uma vez que são seis os sábados entre Pêssach
e Shavuót, aparentemente por esta razão foi acrescentado um sexto
capítulo, ainda na época dos gueonim, quando o Rav Amram Gaón falou
de "Avót e Kinian Torá". Este capítulo adicional, Kinian Torá - literalmente, "aquisição da Torá" - é uma beraitá, material muito
semelhante a uma parte da Mishná não incluída originalmente na
compilação feita pelo Rabi Iehudá Hanassí.
Desde tempos imemoriais, é costume nas comunidades
judaicas da Europa Oriental recitar e estudar Avót desde o Shabat
posterior a Pêssach até aquele anterior a Rosh Hashaná,
perfazendo um total de quinze sábados. Em cada um dos doze primeiros, estuda-se
um capítulo; em cada um dos últimos três, estuda-se dois capítulos. Como a
palavra hebraica para capítulo é pérec, "capítulos" seriam perakim,
e "capítulos de" seriam Pirkê. Assim, a obra passou a se chamar Pirkê
Avót ou simplesmente Pérec.
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Não
é acidente nem coincidência que a época observada para este estudo seja,
originalmente, aquela entre Pêssach e Shavuót. Em Pêssach
celebramos a nossa libertação da escravidão no Egito, e partimos rumo à
santidade, rumo à Torá. Não estávamos prontos, porém, para receber a Torá de
imediato. Somente semanas mais tarde, já ao pé do Monte Sinai, é que pudemos
recebê-la, e nós celebramos isto em Shavuót. Na linguagem simbólica dos
sábios, em Pêssach assumimos o compromisso de "nos casarmos com a Torá";
em Shavuót, este "casamento" espiritual acontece por meio de um pacto
eterno e irrevogável, da aliança com o Todo-Poderoso e Sua Torá. Como se sabe,
o tempo de noivado, de compromisso, serve, na vida real, para que os noivos
conheçam melhor um ao outro, preparando-se para a vida em comum. O mesmo
acontece entre Pêssach e Shavuót. À medida que "contamos os
dias", observando a Sefirát Haômer e esperando receber novamente a Torá
do Sinai, nos preparamos através do estudo de Avót. É ele que nos dará
uma ideia da grandeza, da maravilha e da profundidade da Torá, esta "noiva"
espiritual única que vamos receber. A importância de Avót é tão grande
que, sabe-se, a seguinte observação partiu de um erudito não judeu: "Para se
conhecer os ideais da ética e da devoção rabínicas, nenhuma outra fonte
facilmente acessível pode se equiparar a Avót."
Eu também acredito que não seja mera coincidência
iniciarmos o estudo de Pérek na primavera, quando a natureza
renova o grande ciclo da vida. É na primavera que as forças cálidas, vitais à
regeneração, começam a se agitar e a fluir. Também o homem sente dentro de si o
despertar de poderosos impulsos instintivos. Por isso é tão importante que ele
ouça exatamente nesta época do ano as palavras dos nossos chachamim
("sábios"). São elas que o ensinarão a superar a tentação e a paixão,
desenvolvendo sua força de vontade e controlando suas ações. O Pirkê Avót
oferece mussár, a instrução que nasce da Torá e nos mostra como lidar
com as vigorosas manifestações que chegam com a primavera.
Ainda assim, podemos nos perguntar se precisamos
realmente desta instrução especial. Temos o Shulchan Arúch, um elaborado
código de leis que define o bem e o mal, o justo e o injusto, em todas as
circunstâncias práticas. E a própria passagem da Mishná que recitamos
antes de cada capítulo de Avót proclama: "Todo o (povo de) Israel tem
uma porção no mundo vindouro." Por que devemos, então, ter este mussár
especial, este ensinamento corretivo?
A resposta é que o Shulchan Arúch - o código de
leis sobre o certo e o errado - não é suficiente. A nossa meta não é
simplesmente observar a Lei, embora isto seja importante e fundamental. O
objetivo final da Torá é transformar o espírito humano e o caráter de cada um
de nós em algo belo e Divino. David, o salmista, suplicou ao Todo-Poderoso:
"Guarda minha alma, pois sou um chassid." No sentido clássico, chassid
é o termo que define uma pessoa de profunda bondade e devoção. Mencionamos
anteriormente a receita de um sábio: "Aquele que deseja tornar-se um chassid,
que observe as leis de Nezikin", as leis que tratam de perdas e danos.
Em outras palavras, deve-se aprender da Torá como evitar causar prejuízos e
como pagar adequadamente o mal que se possa fazer. Mas, para outro dos nossos
sábios, isto não é suficiente. Seu conselho para se chegar a ser um chassid
é "... que observe os ensinamentos de Avót". O conhecimento e a
observância estrita da Lei não é tudo. O verdadeiro chassid é aquele
cuja profunda devoção o eleva acima do sentido estrito da Lei. Se ele tiver a
mínima dúvida de que possa estar enganado ou de que sua queixa potencial é
duvidosa, preferirá dar a seu companheiro o benefício da dúvida a fazer uso de
seus direitos legais. O verdadeiro chassid é aquele que superou sua
natureza aquisitiva e olha mais além para enxergar o espírito da Lei.
Se você deseja atingir este nível de caridade e devoção
e, assim, tornar-se um chassid, os ensinamentos de Avót lhe são
essenciais.
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Muito bem. Os comentários anteriores explicam por que
temos o Pirkê Avót. Mas, por que tantas ideias, interpretações e
explicações são geradas pelo Avót? Não bastaria uma boa leitura do
texto, seja em hebraico, seja numa boa tradução? Esta leitura não seria
suficiente para a compreensão e a inspiração?
A resposta é sim, mas apenas em parte. Na visão profética
de Jeremias, o Todo-Poderoso compara Sua palavra com "um martelo que despedaça
a rocha", e o Talmud comenta: "Tal qual a rocha que se parte em muitos
fragmentos sob o golpe do martelo, assim cada palavra do Santíssimo - bendito
seja! - foi dividida em setenta expressões" - uma multiplicidade de
significados e interpretações. Assim como a rocha se despedaça sob o golpe do
martelo, diz novamente o Talmud, "um versículo das Escrituras Sagradas pode
admitir muitos significados". Portanto, o Midrash diz, simplesmente, que
"A Torá tem setenta aspectos".
A linguagem da Torá, tanto sob a forma escrita quanto sob
a forma oral, é multifacetada e tem profundidades e níveis de significado
insuspeitos. Se você tomar o "sentido literal", tomando-a apenas
superficialmente, não verá o esplendor e a glória que oculta.
Em nossa literatura antiga de exegese e mística, toma-se
a palavra PaRDeS para indicar quatro abordagens da Torá, quatro formas de
explorar e extrair seus tesouros de significado. Com as quatro letras da
palavra PaRDeS começam as palavras Peshat, Rémez, Derash e Sod,
respectivamente. Peshat, o primeiro, seria o sentido literal, puro e
simples do texto. Com Rémez, seguimos a estrutura sintática e
gramatical de um versículo, levando em conta que certas palavras possuem um
significado simbólico ou metafórico. O Derash simplesmente omite a
estrutura sintática de um versículo, e até mesmo ignora seu contexto,
percorrendo a Torá em busca de significados apontados pela alusão e associação.
Finalmente, temos o Sod, a leitura mais íntima e profunda de um texto,
geralmente seguindo a concepção mística da Cabalá e atingindo um grau de
profundidade do significado que vai muito além dos anteriores.
Não é por coincidência que PaRDeS - a palavra formada
pelas iniciais das quatro palavras citadas no parágrafo acima - signifique,
literalmente, horta ou jardim. Esta tradução simboliza a exuberante riqueza de
pensamento e inspiração que pode surgir dos textos sagrados, se soubermos como
cultivá-los e como colher os frutos mais difíceis de alcançar.
Podemos dizer que também não foge ao normal a suposição
de que um texto tenha diferentes níveis de leitura e aspectos distintos quanto
ao seu significado. Considere uma simples tonelada de carvão, por exemplo.
Para uma pessoa comum, ela significa exatamente isto - 1000 quilos de
combustível negro. Este tipo de compreensão seria Peshat. Para uma
pessoa com inclinação religiosa, o carvão poderia representar uma expressão da
Providência Divina: ao criar Seu mundo, o Todo-Poderoso dispôs que uma
substância se formasse durante um grande lapso de tempo, de modo que os seres
humanos pudessem ter calor e uma fonte de energia. Esta é a abordagem de Rémez.
Uma terceira pessoa, mais dotada, poderia descobrir
certas propriedades químicas no carvão que possibilitariam convertê-lo em gás,
substância mais fácil de armazenar em tanques e transportar para locais
distantes, onde ele se faz necessário. Esta mesma pessoa pode ainda
aprofundar-se nas pesquisas e aprender como converter o carvão em nylon, um
produto com inúmeras utilidades na vida prática. Agora, pare e pense na imensa
distância que separa um punhado de carvão de um metro de fibra sintética! Não
obstante, pode-se demonstrar que um leva ao outro. Esta abordagem é análoga ao Derash.
Finalmente, surge um físico que se dedica a estudar a
estrutura atômica do carvão. Ao provocar a fissão nuclear, ele libera uma parte
da tremenda energia potencial contida no mineral. Este fenômeno é comparável ao
Sod. Aos olhos de uma pessoa comum, o poder da fissão nuclear parece
absolutamente misterioso, além de sua compreensão. Apenas um grande cientista
com um vasto conhecimento técnico e pleno domínio dos mais sofisticados
instrumentos pode extrair a energia latente da substância. Analogamente, só
os grandes eruditos, aqueles iniciados na sabedoria da Cabalá, podem inferir os
surpreendentes significados ocultos que se encontram latentes e insuspeitos
nas palavras da Torá.
É por meio da linguagem que procuramos compartilhar
ideias e pensamentos. Mas as palavras e as orações são somente sinais e
símbolos dos pensamentos. Os conteúdos abstratos e fugazes que ocupam nossas
mentes são intangíveis, pois não podem ser tocados, capturados ou retidos. Ao
usar palavras, fazemos uma tentativa inadequada de transmitir nossas noções,
intenções e percepções. Mas sempre há algum matiz de significado, algum
resquício inefável que não pode ser traduzido em palavras para alcançar,
assim, a mente do outro.
Isto pode ser melhor assimilado se imaginarmos a verdade
como um poliedro, a figura geométrica de várias faces. O observador jamais
consegue ver todas as faces do poliedro ao mesmo tempo, não importa a posição
que tome. É preciso que ele se desloque e se coloque em várias posições para
conseguir enxergar todas as faces da figura - ou da verdade.
Por esta razão, pela multiplicidade inerente ao
conteúdo, torna-se tão inadequada a leitura simples de um texto referente à
Torá. O mesmo acontece com uma tradução literal desse texto. Para tentar chegar
às alturas, precisamos sondar as profundezas do pensamento dos nossos eruditos
e mestres. Seus ensinamentos, brindados pela luz da Divindade, nos trazem a
versão oral da Torá em seus inúmeros níveis de significado.
Todas as afirmações no Pirkê Avót têm uma
infinidade de explicações e conotações distintas. Em seus comentários,
gerações posteriores de eruditos encontraram ricas nuances de significado em
cada expressão. Para compreendermos e apreciarmos a riqueza espiritual e o
tesouro que constitui Avót, devemos buscar os diferentes aspectos de
significado em cada uma de suas passagens.
Este é precisamente o objetivo do trabalho que você tem
nas mãos. Nele, cada passagem do Pirkê Avót é interpretada e
explicada demoradamente de diversas maneiras, para que a compreensão se dê da
forma mais completa possível.
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Vivemos numa época em que o mussár, o ensinamento
ético, é considerado ultrapassado; uma época em que o castigo, a advertência e
a crítica moral construtiva são considerados de mau gosto, onde o
autoquestionamento e a busca do aperfeiçoamento religioso são vistos como
ofensivos. Nos vemos aceitando passivamente um princípio basicamente
anglo-saxônico: "Cuide de seus próprios assuntos" ou "se vir alguém fazendo
algo errado, não interfira; isto não lhe diz respeito".
Nada poderia ser mais contrário à abordagem judaica.
"Todos os judeus são responsáveis uns pelos outros." Esta é a nossa regra
fundamental e primeira, enunciada e repetida no Talmud e no Midrash. Na
visão eterna e infinita da Torá, o povo judeu é uma unidade orgânica. Todas as
suas partes, divisões e integrantes são responsáveis uns pelos outros. O que
afeta a um judeu, afeta a todos. Rejeitamos o cinismo impiedoso e cruel de
Caim, que pergunta: "Acaso sou eu o guardião de meu irmão?"
Se nosso propósito fundamental na travessia da vida é
buscar desenvolvimento e crescimento pessoal através da ética e da moral, é
vital que possamos aprender - e ensinar - mussár. Somente assim
chegaremos a alcançar, ao lado dos nossos irmãos judeus, o aperfeiçoamento de
nossa espiritualidade. É obrigação de cada um apontar a um vizinho um possível
erro de conduta, ajudando-o a evitar o pecado e suas trágicas consequências.
Nas Escrituras Sagradas lemos: "Quando encontrares o boi
de teu inimigo ou seu asno, perdido, devolvê-lo-ás." Mesmo que o proprietário
deste animal seja seu inimigo, é obrigatório, segundo a Lei, que você o resgate
e o devolva. "Hashev teshivênu lo", diz a Torá, literalmente repetindo o
verbo: "devolver devolvê-lo-ás para ele". Segundo os sábios do Talmud e do Midrash,
isto significa que mesmo que o animal continue escapando, mesmo que isto
aconteça quatro, cinco vezes, você deve sempre devolvê-lo ao dono, ainda que
este mantenha com você uma relação de inimizade.
Vamos supor que, em vez do animal de propriedade de um
inimigo, você encontrasse perdido algo ainda mais valioso, desta vez
pertencente a um amigo. Certamente, não mediria esforços para devolver o bem ao
seu dono. E se fosse o próprio amigo aquele a se perder pelos caminhos sinuosos
da vida? Quão maior não deveria ser sua preocupação, sua profunda obrigação, de
fazê-lo voltar à trilha correta?
Nossos profetas nos lembram que temos a obrigação de
vestir aquele que está nu. Considerando que somos todos filhos de um mesmo Pai
e que, na condição de seres humanos, possuímos a mesma dignidade inata, pois
fomos criados à Sua imagem, temos esta obrigação para com qualquer membro da
família humana que seja demasiado pobre para vestir-se por seus próprios meios.
Pelo mesmo princípio, se encontrarmos alguém desprovido
de direção e de fundamentos religiosos, alguém empobrecido, despojado de uma
percepção superior, não temos a obrigação de "vesti-lo" com nossas mitsvót?
Quando sua alma se encontrar em julgamento, diante do Criador, ele estará
despido de realizações espirituais - a menos que lhe ofereçamos ajuda e
orientação agora. Nós certamente compartilharemos de sua culpa, se não o
ajudarmos a adquirir as preciosas vestimentas do espírito, confeccionadas com
os fios das boas ações e da fé inabalável.
Devemos nos desfazer da fria indiferença que nasce do
egoísmo e da insensibilidade. Vamos adotar, em seu lugar, a conduta judaica de
responsabilidade para com o nosso próximo e de profunda preocupação em relação
ao nosso povo. Desta forma, retornaremos ao mussár, a sabedoria e
ciência moral que devemos aprender e ensinar.
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Ao publicar este trabalho, não procurei ser original.
Procurei, sim, apresentar o mussár que recebi dos meus guias e mentores,
as "boas palavras" que me imbuíram de um forte reconhecimento e apreciação da
nossa herança espiritual.
Fui muito afortunado por aprender o mussár em toda
a sua pureza com os mais inspirados e iluminados mestres, rabinos e autoridades
da nossa época. Tive ainda o privilégio de transmitir esta "boa doutrina" em
conferências anuais sobre o Pirkê Avót durante os últimos
quarenta anos.
O presente trabalho está
sendo publicado com base nestas conferências, na esperança de transmitir este mussár - esta "boa doutrina" - a um número cada vez maior e mais receptivo de
leitores. Se ele servir para transmitir alguns dos nossos princípios e valores
mais caros, as verdades da ética e da moral que temos acalentado e valorizado
como tesouros desde o Sinai, ficarei agradecido à Providência misericordiosa
pelo zechut, o privilégio, que me foi conferido.