Prefácil
Desde de criança, achava que meus avós, pelo fato de se comunicarem em espanhol, eram argentinos. Morávamos em Porto Alegre e a proximidade geográfica do Rio Grande do Sul com a Argentina e o Uruguai permitia que os sinais de suas potentes antenas, aliados á topografia plana do pampa, entrasse com mais força nos receptores de rádio do que as emissoras líderes do país, como a Nacional e Tupy. A opção de lazer, à noite, era compartilhar os programas das rádios farroupilha, Difusora e Gaúcha com os tangos e boleros das emissoras castelhanas. E dê-lhe tangos e boleros, mas o que fazer? Uma vez ao ano com a família se engalanava para a cerimônia do Pessach, a Páscoa judaica. Minha avó caprichava nos preparativos das komidikas, com destaque para as tapadas, agristadas, fritadas, burrecas, guevos haminados e tantas outras, mas não era permitido degustá-las antes de encerrada a reza, que durava, seguramente, horas e horas. Meu avô, na cabeceira da enorme mesa (que, depois, descobri, não era assim tão grande) comandava a cerimônia, com a leitura cantada da Hagadá, que relatava a fuga dos judeus do Egito, onde eram escravos, a travessia do deserto, que durou quarenta longos anos, até a chegada à terra prometida. Cada um dos convivas, adulto ou criança, contava - e cantava - uma das estrofes, em ladino, ditilografadas em papel de seda bastante amarrotado, que atestava sua antiguidade e autenticidade: "Este es el pan que komieran muestros padres en tierra de afito. Todo el ke tienga ambre ke venga y koma. Todo el que tienga de menester que viega y pasqüe. Este año aki, siervos. E nel viñién, en tieras de Yerushalaym, ijos foros". Na realidade, não estávamos, em sentido figurado, na acolhedora e farta Leal e Valerosa Porto Alegre, mas nas areias do inóspito e hostil Egito dos Faraós. Todavia, mesmo com a fome apertando esperávamos, ansiosos, a chegada do trecho que enumerava as pragas que o criador lançava contra o soberano e que culminou com a morte do seu primogênito. Não que tivéssemos alguma coisa contra a pobre criança, mas a cada praga tínhamos o privilégio de tocar, com a ponta do dedo mindinho, no cálice do delicioso vinho adocicado, quase um suco de uva, que a Vó Maria tinha se esmerado em produzir para a cerimônia. À medida que as gotas iam sendo depositadas, uma a uma, na beirada de cada prato, pronunciávamos uma exclamação impossível de esquecer, mesmo passadas tantas décadas: "Mos Abastava", com o significado de não ter sido preciso despejar tantas desgraças sobre o Faraó e seu súditos. Bastaria uma ou duas e ele, provavelmente, teria libertado os escravos judeus e permitido que saíssem do reino, sob a liderança de seu filho adotivo Moisés, o Moshé Rabeno dos sefaradis. Mas aí a cerimônia não teria o mesmo encanto. Ladino,, pra mim, é música pura e me faz recordar os melhores momentos da minha infância. Agradeço, em meu nome e, seguramente, no dos demais brasileiros, sefaradis e não sefaradis, judeus e não judeus, o privilégio de ter conhecido a Cecilia e seu emprenho em não deixar morrer a língua que foi chamada, com justa razão, de florida.