Introdução
Ao escolher o tema de dissertação de Mestrado na Universidade de São Paulo, agora transformada em livro, fui impelido por uma motivação que não fica restrita somente ao âmbito intelectual e acadêmico. É bem verdade que tinha a curiosidade de compreender como diferentes figuras do povo judeu lidaram com as transformações tão profundas que acometeram o Ocidente, a partir do final do século 18. Também sou obrigado a confessar que, só pelo deslumbramento com o tema, e o entendimento mais aguçado dos pormenores, nuanças e da complexidade que esta discussão remete, teria-me dado por satisfeito.
Porém, ao longo da pesquisa, percebi que este tema representava algo muito mais profundo, que poderia denominar existencial. A minha busca não era só pelo conhecimento, pelo saber, pela solução de uma equação com tantas "variáveis" que, de tão complexa, sua resolução parecia impossível, mas, também, pelo entendimento de uma questão que até nossos dias intriga e desafia pessoas com uma identidade religiosa que pretendem, desejam e acreditam no imperativo de pertencer à sociedade moderna, com toda a problemática que esta inserção apresenta.
As "variáveis" desta equação, às quais me refiro, dizem respeito à emancipação dos judeus na Europa, a partir do final do século 18, em concomitante ao processo de secularização da vida social, o surgimento e a forte popularidade que o Movimento Reformista atinge neste período, o processo de assimilação de grandes parcelas de judeus na sociedade mais ampla, que culmina com a perda de significativos componentes do repertório cultural e religioso do judaísmo tradicional e, por fim, as estratégias das lideranças rabínicas tradicionais para lidar com esses processos.
A modernidade trouxe consigo muito mais que transformações sociais, políticas ou religiosas. Ela provocou, instigou e levou a uma reflexão muito mais profunda, no que diz respeito ao papel do homem no mundo, que passa a funcionar orientado por novos padrões de pensamento, resultado do rápido avanço da ciência e da noção de progresso como desideratum último.
Nesse cenário de grandes transformações, judeus e não judeus tiveram que reorganizar suas visões de mundo. No caso das lideranças judaicas, neste novo arranjo, valores, identidade e missão precisam ser redefinidos - não mais a partir de uma estrutura externa que impõe, obriga e limita, mas sim, a partir da escolha, da opção, do pacto e do compromisso.
Ao longo dos anos em que se estendeu esta pesquisa, compreendi que uma das motivações por trás dela era uma busca pessoal - a partir da qual pretendia compreender como o judaísmo contemporâneo pode e deve dialogar dentro desta nova ordem, qual a sua relevância e qual a sua mensagem para um mundo onde a relativização dos valores e a crescente importância do indivíduo vis-à-vis à comunidade parecem conflitar com as premissas da religião, baseada na revelação, verdade absoluta e submissão completa a Deus. Compreendi que precisava buscar os limites, se é que há algum, para esta exposição e este diálogo.
Em relação às reflexões que, é necessário salientar, já começaram a partir do final do século 18 e continuam relevantes nos dias de hoje. O pensador Eliezer Don-Yehiya explica haver quatro tipos diferentes de respostas religiosas ao processo de secularização e modernização: isolamento; adaptação; compartimentalização e expansão. Enquanto o primeiro e o quarto tipos de reação representam facetas e manifestações associadas ao fundamentalismo, uma vez que negam qualquer tipo de interlocução com a sociedade - evitando o contato pelo isolamento, ou impondo o seu modus vivendi pela expansão, as duas reações - a de adaptação e compartimentalização - interagem com a realidade e buscam alternativas para a preservação de valores e princípios importantes e preciosos, dentro de um contexto diferente.
Sendo um admirador da personalidade e da obra do Rabino Hirsch, a leitura das possibilidades elencadas pelo pensador Eliezer Don-Yehiya estimulou-me a interrogar sobre como definir seu modelo nesse contexto. Ele estaria optando pela adaptação, ou pela compartimentalização? Qual a verdadeira relação dele com os avanços sociais de sua época? Ele via isto com entusiasmo e deslumbramento, assim como muitos de seus correligionários, ou tinha ressalvas, ceticismo e críticas às possibilidades abertas com a Modernidade? Fui descobrindo, ao longo desta pesquisa, que a resposta do Rabino Hirsch, por sua complexidade, seriedade e espírito, ajudaria entender melhor a realidade do judaísmo contemporâneo e, mais especificamente, da Ortodoxia atual, e que o modelo por ele proposto poderia servir de guia e linha-mestra para a minha própria relação com o mundo. Como judeu ortodoxo, educador e rabino, frequentemente sou confrontado com temas, dilemas e desafios semelhantes àqueles enfrentados pelo Rabino Hirsch em sua época. A leitura e o entendimento de suas posições, proposições e visão de mundo, mesmo quase dois séculos após sua elaboração, continuam inspirando e iluminando o meu caminho e o de muitos que acreditam na possibilidade do judaísmo ser integralmente aplicado à vida e ser viável mesmo numa sociedade moderna.
Entretanto, é importante esclarecer que o objetivo desta pesquisa não é fazer um ensaio filosófico, nem tampouco uma análise teológica. Procurei desenvolver um estudo histórico, a partir de fatos, textos e relatos do Rabino Hirsch, e de seus diversos contemporâneos, sobre o modelo proposto por ele, no qual buscou as respostas para os desafios de sua época, o início da Modernidade, e que abriu os caminhos e as estradas para o nosso tempo.
No capítulo 1, apresento a biografia do Rabino Hirsch, de seus mestres e inspiradores e sua vasta produção literária, que continua sendo um de seus maiores legados.
O capítulo 2 é dedicado a mostrar como a implementação deste modelo culmina com a criação de uma nova denominação na ortodoxia tradicional: a neo-ortodoxia. Apresento quais são as justificativas para esta nova denominação e quais são os aspectos que o diferenciaram do judaísmo ortodoxo tradicional.
Para muitos, o modelo é visto como conciliador ou moderado. Afinal, ele pretende aproximar o conhecimento secular, a cultura e os padrões de uma nova sociedade aos valores milenares e tradicionais da religião judaica. Todavia, o modelo pretende mostrar, para sua geração, que o judaísmo histórico e tradicional continua relevante e pertinente, oferecendo respostas e orientação para o judeu, mesmo naquele contexto de Modernidade. E, conforme veremos ao final desta obra, acredito que este paradigma é válido e necessário mesmo em nossos dias.
Aliás, diria que este modelo consegue conciliar e aproximar mundos aparentemente tão distintos e distantes - o sagrado e o laico; a sociedade tradicionalista e a sociedade moderna. Além do mais, acredito que as ideias do Rabino Hirsch poderiam representar uma possibilidade real e fonte de inspiração para lidar com fenômenos religiosos muito atuais da nossa sociedade, estereotipados no extremismo, fanatismo e intolerância em relação ao diferente. A opção pelo equilíbrio e pela moderação, não por concessão, abdicação ou fraqueza, mas sim, por princípio, como um ideal e objetivo, precisa ser melhor compreendida e mais reforçada.
Isto posto, o grande desafio, então, foi esmiuçar o modelo do Rabino Hirsch, conhecido como "Torá* Im Dérech Érets",** ou seja, "Torá com o caminho da terra". A explicação mais pormenorizada desta expressão será apresentada no capítulo 3. Nesse contexto, o termo Torá inclui o estudo dos textos sagrados em toda a sua abrangência e amplitude - tanto a Lei Escrita quanto a Lei Oral, a prática e o cumprimento estrito das mitsvót, ou seja, dos preceitos judaicos, e uma vida imbuída por uma identidade religiosa plena, segundo as diretrizes da ortodoxia judaica. Já o conceito Dérech Érets pode ser compreendido como o desejo e a tentativa de uma inserção completa na sociedade moderna, apropriando-se das ferramentas necessárias para que isso ocorra - sejam estas os estudos de um currículo laico, que viabilizem uma formação acadêmica e profissional, ou seja a exposição aos costumes, à cultura e aos valores da sociedade moderna.
O capítulo 4 é dedicado a uma análise, a partir das fontes clássicas do judaísmo, sobre o tema diretamente relacionado ao modelo de Torá Im Dérech Érets: a ocupação com estudos que não sejam os estudos de Torá, principalmente estudos associados à cultura ocidental, representados pela sabedoria grega. Além deste tema, outra questão que deriva do binômio Torá Im Dérech Érets é a ocupação do judeu com o sustento e o trabalho, que desviam o foco do estudo de Torá.
Como fonte primária de minha pesquisa, utilizei as próprias obras do Rabino Hirsch, traduzindo os textos que cito do hebraico ou do inglês. As fontes secundárias são os inúmeros livros e artigos citados na bibliografia, que analisam a obra do Rabino Hirsch, o contexto em que viveu e as inovações que propôs. Também estas fontes foram traduzidas diretamente do hebraico ou do inglês, já que é inexistente uma bibliografia acadêmica em língua portuguesa sobre o Rabino Hirsch, em particular, ou sobre a neo-ortodoxia, em geral. Para completar a coleta de dados e a bibliografia empregada em minha dissertação, tive a oportunidade de visitar a Mendel-Gottesman Library da Yeshiva University em Nova York, EUA, e a Biblioteca da Michlelet Herzog em Alon Shevut, Israel.
A produção escrita do Rabino Hirsch é extremamente abrangente e vasta. Seria pretensioso de minha parte, no contexto deste trabalho, desenvolver um estudo tão amplo e aprofundado de sua obra ou querer apresentar ao leitor a magnitude de suas ideias ou seus escritos. O que fiz foi citar algumas referências importantes e pertinentes ao tema, buscando respeitar a intensidade e a profundidade de uma visão de mundo sintetizada na expressão Torá Im Dérech Érets. É este o cerne de meu trabalho: o modelo de Torá Im Dérech Érets e a criação da neo-ortodoxia. Acredito que a continuação desta pesquisa seja justificável e necessária, e se concentraria mais na própria obra e produção do Rabino Hirsch, apresentando e categorizando os temas sobre os quais discorreu.
Inicialmente, pretendia estudar o modelo educacional proposto e criado por Hirsch em sua comunidade. No entanto, ao longo desta investigação, compreendi que Torá Im Dérech Érets não representa somente o modelo para uma linha educacional ou para uma escola. Afinal, para o Rabino Hirsch, este modelo está ligado com a essência, o achievement e o fulfillment do povo judeu. Daí eu ter ampliado o foco e o tema para o modelo de Torá Im Dérech Érets, analisando a relação deste com a criação da neo-ortodoxia. Poderia ter aprofundado mais no tema a princípio proposto - o modelo educacional judaico - ,estudando as características da escola criada por Hirsch em Frankfurt e analisando suas diferenças em relação ao modelo educacional das ieshivót, representadas principalmente pelas instituições de Volozhin, Pressburg e Lublin. Contudo, em função da importância e densidade que este tema merece, acredito que caiba uma pesquisa à parte, somente com este eixo.
Poderia também ter ampliado o estudo e realizado algumas comparações com o pensamento e a filosofia de outros rabinos contemporâneos do Rabino Hirsch, dentre os quais uma figura pouco conhecida do público brasileiro - o Rabino Shemuel David Luzzatto (1800-1865), líder da Academia Rabínica de Pádua, na Itália. Aliás, o autor do livro Hadérech Hamemutsáat: Reshit Tsemichat Hadatiut Hamodernit [o Caminho Intermediário: o surgimento da religiosidade moderna] - , o pesquisador Dr. Ephraim Chamiel, propôs um estudo comparativo entre ambos, apresentando justamente o posicionamento de cada um em relação aos principais dilemas e desafios que a Modernidade trouxe. Ainda assim, não foi possível estabelecer uma relação clara de influência que alguma destas personalidades tenha exercido sobre a outra, apesar de algumas trocas de correspondência que houve entre eles, e apesar de ambos compartilharem de sentimentos muito semelhantes de solidão e isolamento, em função das posições moderadas e inovadoras que adotaram. Sendo assim, optei por manter o foco do meu estudo no Rabino Hirsch, em sua filosofia e em seus posicionamentos.
A figura do Rabino Hirsch foi extremamente estudada e debatida nos EUA e em Israel. Dentre as principais obras sobre o Rabino Hirsch, podemos citar as pesquisas realizadas pelo Rabino Prof. Mordechai Breuer: Torá Im Dérech Érets - Hatnuá, Isheha Verayoneha [o Movimento, as figuras e as ideias] e The Torah Im Derech Eretz of Samson Raphael Hirsch. Outra fonte importante é o livro editado pelo Dr. Yona Immanuel, Rabbi Shimshon Raphael Hirsch, Mishnató Veshitató [sua obra e sua ideologia].
Um importante estudo sobre a produção do Rabino Hirsch foi realizado pelo Prof. Noah H. Rosenbloom, sob o título Tradition in an Age of Reform: The Religious Philosophy of Samson Raphael Hirsch. Apesar de abrangente, ao longo desta obra, fizemos algumas considerações e ressalvas sobre alguns dos pontos levantados e das conclusões propostas por ele. O Prof. Robert Liberles publicou o livro Religious Conflict in Social Context: The Resurgence of Orthodox Judaism in Frankfurt Am Main, 1838-1877, que traz dados mais precisos, menos especulativos e uma visão menos tendenciosa sobre o Rabino Hirsch.
A principal biografia sobre o Rabino Hirsch publicada em língua inglesa é a obra do Rabino Eliyahu Meir Klugman: Rabbi Samson Raphael Hirsch, Architect of Torá Judaism for the Modern World. Este livro é bem detalhado e apresenta fontes muito confiáveis. Contudo, uma vez que a publicação foi feita pela Editora Artscroll, oficialmente identificada e filiada ao Movimento das ieshivót, algumas das posições mais polêmicas do Rabino Hirsch foram relativizadas ou até mesmo omitidas, buscando esboçar uma figura mais aceita e convencional aos padrões do mundo ultraortodoxo.
Pouco foi apresentado para o leitor de língua portuguesa sobre a obra do Rabino Hirsch, com exceção da obra Dezenove Cartas sobre Judaísmo, publicada pela Editora Sêfer, em 2002. Acredito que este trabalho possa contribuir para resgatar e divulgar um pouco mais, no âmbito dos estudos judaicos brasileiros, sobre esta figura tão relevante do pensamento judaico, cujo legado, por sua amplitude e relevância, pode ser incorporado no mundo judaico contemporâneo.
Espero, também, que uma leitura criteriosa traga à luz nuanças e particularidades sobre a própria ortodoxia que, assim como o próprio judaísmo, não é monolítica - apesar de nem sempre ser compreendida ou retratada, a partir de toda sua complexidade e com todas suas facetas e diversidade. Pretendo fazer uma contribuição no sentido de trazer novamente ao debate um modelo de ortodoxia que parece ter sido relegado a um plano secundário na sociedade moderna, uma sociedade de extremismos e polarização, com todas as implicações e desdobramentos que isto implica. A própria radicalização e polarização da ortodoxia em Israel e nas Diásporas judaicas, fenômeno amplamente discutido por estudiosos do judaísmo pertencentes às mais diversas correntes, revela o quão importante é trazer este debate à comunidade judaica brasileira, em particular, e à sociedade brasileira como um todo.
* Torá é o nome da Bíblia Hebraica, a Lei Escrita. Sua aplicação, neste contexto, não fica restrita somente aos cinco livros do Pentateuco ou aos 24 livros da Bíblia completa (Pentateuco, Profetas e Escritos). Tampouco fica limitada aos livros do Talmud, a Lei Oral. A aplicação do termo Torá, nesta expressão, é uma referência à vida judaica religiosa em toda a sua plenitude, seguindo o cumprimento circunscrito à Lei e aos rituais, segundo as diretrizes da ortodoxia judaica.
** A tradução literal do termo Dérech Érets significa “o caminho da terra”. Geralmente, essa expressão é utilizada para descrever uma atitude polida, respeitosa, pautada por um padrão moral e ético. Pode também ser usada para designar o trabalho, o labor. A aplicação deste termo na literatura do Rabino Hirsch remete a uma inserção plena na sociedade, incluindo o conhecimento científico e a cultura.