“RELIGIÃO”, “DEUS” e “ALMA”
Muitos dos termos que costumamos empregar ao nos referirmos a temas como judaísmo e espiritualidade chegaram a nós através de traduções e possuem uma carga de subjetividade quanto ao seu significado e a seus objetivos. Isso afeta não somente a quem se aproxima da Sabedoria de Israel através de textos traduzidos, mas também chega a um nível ainda mais profundo, deformando nossa percepção do judaísmo. Em outras palavras: Acostumamo-nos a avaliar e interpretar a Sabedoria de Israel de acordo com parâmetros estranhos à nossa própria tradição.
Termos tão familiares como “Religião”, “Deus” e “Alma”, a partir dos quais surgem as discordâncias entre os defensores da “Religião” e dos chamados “laicos”, são conceitos estranhos ao judaísmo. Tais conceitos baseam-se em traduções simplistas e errôneas que dividiram os homens e criaram confusão em nosso mundo espiritual.
O vocábulo “Religião” provém do latim re-ligare, que quer dizer “voltar a ligar aquilo que foi desconectado”. Esse conceito não aparece nos textos da tradição hebraica, nem em nossa tradição oral até a Idade Média. Neste período, os sábios judeus eram pressionados a participar de confron-tações verbais, com o intuito de demostrar a validade da espiritualidade do povo de Israel.
Baseados nisso, Sábios como o Rabino, Médico e Poeta Iehudá Halevi (século X) em seu livro “o Cuzari”, e Maiomônides (século XIII), especificamente em seu “Guia dos Perplexos”, encontraram-se forçados a declarar que a Torá de Israel é também uma “Religião”, organizada com bases lógicas e sobre uma estrutura desenvolvida. Por isso recorreram ao vocábulo Dat, que significa norma e iniciação.
O judaísmo consiste na iniciação de um povo inteiro nas normas/mitsvot** que os aproxima, gradativamente, ao Cadósh Barúch Hú *.
Essas normas constituem as leis objetivas a partir das quais o Cadósh Barúch Hú conforma Sua Criação, e que, codificadas, nos são transmitidas através da Torá.
A palavra “Religião” não é aplicável ao judaísmo, uma vez que confunde e faz com que este seja interpretado com base em doutrinas estranhas. O conceito “religar” implica no ato de voltar a ligar duas ou mais coisas separadas.
A Criação está permanentemente unida ao Cadósh Barúch Hú – do contrário, não existiria. O dilema está na forma em que o homem, síntese da Criação, se relaciona e percebe o Cadósh Barúch Hú: com a consciência de que Ele e sua Criação são uma Unidade, ou fracionando a continuidade da realidade e da vida.
Nossa tradição descreve que todos os aspectos da vida são diferentes graus de uma mesma e única realidade, o Infinito/Ein-Sof. Esta realidade gerada pelo Cadósh Barúch Hú contém todos os estados possíveis, e é ilimitada e indivisível.
A palavra “Deus” deriva do latim Deus, que, por sua vez, provém de Zeus, divindade da mitologia grega, filho de Cronos, “Deus” do tempo. Isto dificulta nossa compreensão e deforma nosso conceito da realidade, já que pretende definir a base e objetivo da Torá de acordo com uma lógica humana limitada pelo espaço e pelo tempo.
Nossa tradição nos transmite que: “Antes da emanação das emanações e da criação dos mundos, a Luz do Infinito preenchia toda a realidade” (livro “Ets Chaím” - a Árvore das Vidas), sendo a Criação uma projeção inferior de Sua mesma Luz.
Na Torá, nos livros dos Profetas, Escritos, etc. encontramos dez nomes gerais que designam dez formas através das quais o homem pode perceber a plenitude da Luz Infinita que se expande desde a Essência do Criador (consulte o vocábulo NOMES no capítulo “Conceitos Básicos”).
Todos os nomes e denominações que a Torá emprega não se referem à Essência do Criador, já que SUA Essência encontra-se além de qualquer nome e denominação possível. Os nomes mencionados na Torá em referência ao Criador indicam a percepção que o homem tem da plenitude da Luz que se expande de SUA Essência, denominada na linguagem da Kabalá, Atsmút.
A confusão e a falta de rigorosidade continuam quando chegamos ao conceito “Alma”. Aqui, geralmente se multiplicam as definições, ficando finalmente o conceito pendente em uma áurea “espiritual” e “mística”, sem conteúdo, objetivo nem direção. Isto quer dizer que, quando se fala de “Alma” ou espírito, trata-se geralmente, como nos casos de “Religião” e “Deus”, de traduções inexatas das noções originais hebraicas.
A Luz projetada desde o Infinito dentro do espaço da Criação adquire diversas gradações à medida que desce e distancia-se de sua origem e de sua fonte.
Estes graus da Luz do Infinito, em sua descida pelos diversos mundos, adquire características diferentes, de acordo com a sua distância espiritual em relação à fonte que a emite, o Infinito/Ein Sof.
Por isso, a tradição da Kabalá possui uma vasta e exata nomeclatura, que indica os diferentes graus e formas através das quais a “Alma” se manifesta. O estudo dessa nomeclatura (a qual desenvolveremos ao longo de nosso livro), tanto em sua forma teórica como na aplicação das Mitsvót, é a base do estudo da Sabedoria da Kabalá.
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* Mitsvót: Código que inclui 613 instruções contidas na Torá, para o trabalho espiritual do povo de Israel.
** Cadósh Barúch Hú: Denominação hebraica empregada para designar, de forma geral, o Criador.