Prefácio à edição brasileira
Tomar! (Diga!)
Este era o imperativo que meu mestre, HaRav Dr. Aharon Lichtenstein ZTL usava para iniciar as suas famosas e concorridas aulas de Talmud. A cada encontro, que durava pelo menos 2 horas, ele costumava olhar ao seu redor e escolher um aluno que iria ler e comentar o trecho em pauta, respondendo aos diferentes questionamentos que ele fazia para aprofundar e desenvolver o tema.
Para nós, alunos, aquele momento representava uma mistura de diferentes sentimentos. De um lado, o temor de ser chamado; de outro, o mérito de ser lembrado individualmente e de receber a grande honra de poder conduzir publicamente a aula. Costumávamos preparar cada trecho ao longo de 2 a 3 dias, através de horas de estudos, pesquisas, debates, leituras e resumos, para conhecer e dominar cada detalhe do assunto. Ninguém queria ser chamado de surpresa, muito menos desapontar nosso mestre com uma leitura superficial ou despreparada! Quando isso acontecia, o Rav tentava amenizar a situação e evitar o constrangimento do aluno escolhido. Mesmo assim, no início da aula o silêncio reinava absoluto, cada um se encolhia em sua cadeira, tentando de certa forma passar despercebido; de outro lado, o desejo íntimo e acanhado de ouvir nosso próprio nome sendo chamado pelo Rav era muito intenso - uma vez que representava um tipo de condecoração: Você é meu aluno, gostaria muito que lesse para nós! Lembro até hoje a forte palpitação que me acometeu quando, na primavera de 1998, meu nome foi chamado para conduzir a leitura daquele dia: Shmuel, Tomar!
Sentíamos uma profunda reverência, um grande respeito e, acima de tudo, uma enorme admiração pelo nosso mestre. Ele era versado e dominava com proficiência e profundidade os textos bíblicos e sua exegese, a literatura talmúdica - Bavli e Yerushalmi -, com todos os seus comentaristas; a literatura rabínica dos Midrashim; a literatura dos Gueonim; as obras dos Rishonim, em especial o Mishnê Torá do Maimônides; a jurisprudência do Shulchan Aruch e seus codificadores, e obras de Responsa, desde a época medieval à contemporânea; dominava a literatura da Filosofia e do Pensamento Judaico. Sua ampla e abrangente formação secular ampliava o seu repertório de conhecimento para as obras clássicas da filosofia e literatura universal, bem como os pensadores medievais e contemporâneos.
Mas não era só o gigantismo do seu saber que nos encantava. Provavelmente, a maior marca que ele imprimiu nos milhares de alunos que educou ao longo de sua vida, era a de sua personalidade nobre, do seu caráter sublime, sensível e humilde. Para nós, ele era a personificação de tudo aquilo que ensinava e pregava.
O estandarte moral, ético, intelectual e espiritual que o Rabino Aharon Lichtenstein estabeleceu para si fugiam do senso comum e da compreensão de todo aquele que o conheceu. Ele buscou e educou para a grandeza do espírito, do saber e da prática. Não se contentava com mediocridade nem com concessões. Queria atingir o máximo em tudo o que fazia e em tudo o que estudava. Sua visão de mundo era de totalidade - todo e qualquer campo do conhecimento pode e deve ser aliciado para uma melhor compreensão do mundo e de Seu Criador. Ele acreditava que, através da profundidade e da abrangência, a relação do ser humano com Deus assumia outra dimensão e perspectiva.
Nascido em Paris, França, no dia 23 de maio de 1933, 28 de Yiar de 5693, era filho do Rabino Dr. Yechiel e de Bluma Lichtenstein. Ainda pequeno, teve que fugir da França, junto com a sua família, após a ascensão do regime nazista na Alemanha. Certa vez, ele me confidenciou que o primeiro país que concedeu visto de imigração para a sua família foi justamente o Brasil. Mesmo assim, seu pai recusou levar a família para o hemisfério sul, uma vez que não havia uma estrutura educacional compatível com aquilo que pretendia proporcionar ao seu filho.
O Rabino Aharon estudou na Yeshivat Haim Berlin, com o célebre Rabino Yitzchak Hutner, autor do livro Pachad Yitschac, que teve uma grande influência em sua educação. Ao concluir seus estudos colegiais, seguiu para o Rabeinu Itzchak Elchanan Theological Seminary (RIETS), da Yeshiva University, onde se tornou o mais jovem aluno a frequentar as aulas do famoso Rabino Dr. Joseph Dov HaLevi Soloveitchik - HaRav, como era conhecido por seus alunos. O Rav Aharon se tornou o mais próximo discípulo do Rav Soloveitchik.
Ao concluir seus estudos rabínicos, foi incentivado pelo seu mestre a seguir para a Universidade de Harvard. Ali ele obteve seu Ph.D. em Literatura Inglesa. Sua tese de doutorado - The Rational Theology of a Cambridge Platonist - versava sobre o filósofo inglês Henry More. Durante aquele período, ele continuou estudando individualmente com seu mestre, em Boston.
Em 1960, casou-se com a Dra. Tovah Soloveitchik, filha de seu reverenciado mestre. Com apenas 28 anos ele foi nomeado o Rosh Kolel de Yeshiva University, cargo que ocupou até o ano de 1971, quando aceitou o convite do Rabino Yehuda Amital para assumir, ao seu lado, o cargo de Rosh Yeshivá da recém-inaugurada Yeshivat Har Etzion, em Alon Shevut, Gush Etzion. Muitos anos depois, o Rav Aharon revelou que esta decisão foi motivada por um sentimento de idealismo, pioneirismo e desafio, principalmente o de estabelecer um centro avançado de estudos de Torá no qual os seus alunos se alistariam no Exército de Israel.
Ele dividiu por quase quatro décadas a liderança da Yeshivá ao lado do Rabino Amital. Embora tivessem personalidades e estilos completamente diferentes, o sentimento de respeito e reverência mútuo, bem como a liderança enérgica de ambos, consolidou a Yeshivat Har Etzion como uma das mais reconhecidas Yeshivot Hesder. O Rav Aharon acreditava estar no imperativo de cada jovem servir o exército por razões morais, nacionais e espirituais. Ele escreveu um importante artigo Zot Torat haHesder, onde estrutura e embasa esta sua visão.
Além de ser um grande sionista, ele acreditava numa Torá engajada, que poderia e deveria ser inserida em todos os contextos e instâncias da vida e da sociedade. O Rav Aharon educava seus alunos a assumirem a liderança, o protagonismo e a responsabilidade, seja durante o serviço militar, seja em suas escolhas profissionais, para que os verdadeiros valores da Torá ecoassem em todas as esferas.
Para o Rabino Lichtenstein, o estudo da Torá, em toda a sua complexidade e profundidade, era o centro e o foco de sua existência. Ele era um talmudista par exellence, imbuído da tradição de Brisk,1 cujo estudo racional e analítico revolucionou o estudo da Torá ao longo do século XX. E, através deste conhecimento e olhar, ele analisava a sociedade e a vida, com todos os desafios e com toda a problemática que esta apresenta ao homem de fé. Porém, ele acreditava convictamente no dever e na responsabilidade dos estudiosos e seguidores da Torá de interagirem com o mundo e trazerem a intensidade moral e espiritual para a sociedade.
Ele possuía uma visão extremamente humanista e sensível, e isto definiu uma linha muito clara nas suas deliberações haláchicas, onde conceitos como Kevod haadam (a dignidade humana), Tselem Elokim (a imagem Divina), Tsorech gadol (extrema necessidade) e Pikúach nefesh (risco à vida) são recorrentes nas suas determinações normativas. Ele não hesitou em defender posições controversas no debate público em diversos temas contemporâneos. Através de sua visão profunda, equilibrada e totalmente embasada na literatura rabínica, passou a ser consultado com muita frequência por líderes e pensadores do povo judeu.
O serviço Divino - Avodat Hashem - era o objetivo maior de sua vida. O Rav Aharon era extremamente temente a Deus, meticuloso na prática das mitszvot, refinado em sua atitude com o próximo e bondoso em seus atos de Chessed. As suas orações eram feitas com grande devoção e muita concentração. Observá-lo completamente imóvel durante a Amidá nos dava a clara percepção que ele se sentia perante Hashem num encontro íntimo e sincero.
Ao longo de quase cinco décadas, através de dezenas de artigos publicados em diferentes veículos, de seus discursos e palestras proferidos na Yeshivá, em Universidades e em diversos fóruns públicos, ele foi uma das principais e mais importantes referências e autoridades para o Movimento Religioso Sionista em Israel, bem como para a Ortodoxia Moderna nos EUA.2 Ao longo destes anos, formou milhares de alunos, entre os quais destacados Rashê Yeshivot, rabinos, educadores, médicos, juízes, advogados, pesquisadores e empresários, que buscam aplicar em suas diferentes áreas de atuação a síntese que ele representou e para a qual ele educou: o compromisso com o estudo da Torá e de seu engajamento com o mundo, uma vida embasada em moralidade e responsabilidade.
No ano de 2014 ele foi laureado com o Prêmio Israel, pelas suas contribuições para a sociedade israelense e, principalmente, pela sua obra literária. Em 20 de abril de 2015, 1º de Yiar de 5775, o Rav Aharon faleceu, aos 81 anos, deixando sua esposa, 6 filhos, netos e bisnetos. Em seu enterro, foi acompanhado por milhares de alunos e admiradores, entre eles figuras importantes do mundo rabínico e político.
Por mais de duas décadas, desde que ingressei na Yeshivá, não há um dia sequer que não penso na figura de meu mestre, buscando, através do seu exemplo, a inspiração e a motivação para uma vida pautada em moralidade, retidão, responsabilidade social e compromisso com o destino de nosso povo, bem como o aprofundamento no estudo de Torá e na prática de mitsvot. No ano de 2003, quando fomos agraciados com o nascimento de nosso filho, demos a ele o nome de meu mestre, fazendo uma singela homenagem como reconhecimento pelo impacto e pela influência que ele exerceu em minha vida. Treze anos se passaram e, chegado o momento do Bar Mitsvá dele, decidimos publicar esta obra, como uma forma de expressar nossa gratidão a Deus e nosso desejo de ver todos os nossos filhos seguindo o caminho trilhado pelo Rav Aharon que, para nós, é o caminho autêntico de uma Torá que enobrece o homem e engrandece o Nome de Hashem!
Faço um reconhecimento especial e uma homenagem carinhosa ao estimado prof. Jairo Fridlin, que não poupou tempo nem esforços para a publicação desta obra e para a revisão meticulosa do texto. À frente da Editora Sêfer, ele tem possibilitado a toda uma geração de nossa comunidade o acesso aos valores milenares do judaísmo e, também neste sentido, o seu mérito é imensurável!
Parabenizo o Sr. David Gorodovits pela sua primorosa e requintada tradução e agradeço ao meu querido amigo, Sr. Edgar de Picciotto, pela revisão do texto final.
À Família Lichtenstein, em especial à Rabanit Tovah e ao seu filho, o atual Rosh Yeshivá, HaRav Moshe, bem como à Yeshivat Har Etzion, representada pelo Sr. Yoel Weiss, Vice-Presidente Executivo do Etzion Foundation, o meu sincero agradecimento pelo apoio a esta empreitada e por autorizar a utilização da obra original em inglês By His Light para esta tradução.
Finalizo com uma oração: Que Hashem permita que eu e minha querida esposa Tamara possamos ver nossos filhos - Dina Moriah, Dalia, Aharon Michael e Yitzchak Yehuda Arieh - crescendo e seguindo o caminho da Torá e das mitsvot, inspirados pelos ensinamentos e pelo legado de meu querido e saudoso mestre, HaRav Aharon Lichtenstein ZTL, e que o seu mérito e sua Torá proteja e ilumine os seus caminhos e de todo Am Israel.
Rabino Saul Paves
São Paulo, Yiar de 5776.
1. A tradição de Brisk foi criada e estruturada principalmente pelo Rabino Chaim Soloveitchik, conhecido como Reb Chaim de Brisk. Ele foi rabino na famosa Yeshivá de Volozhin e ficou notabilizado pelo sistema analítico do estudo do Talmud, buscando a conceitualização e a definição precisa das categorias haláchicas, fazendo uma leitura crítica e detalhista de cada trecho e discussão do Talmud, conhecida como chakirá, ou seja, investigação.
2. Para uma bibliografia completa de sua obra, ver: http://etzion.org.il/vbm/archive/Bibliography-web.htm