Prefácio
Talvez mais do que um prefácio seria preciso traçar aqui o histórico de uma aventura temerária. Aventura porque esta coletânea, nascida do desejo de oferecer ao leitor brasileiro uma visão panorâmica do pensamento judeu e um contato direto com algumas de suas manifestações características, entreabriu-nos, e esperamos que suceda o mesmo a quem venha a manuseá-la, não apenas um museu arqueológico de concepções filosóficas, teológicas, éticas, hermenêuticas, jurídicas e religiosas, uma dessas exposições onde as ideias são exibidas como curiosidades ou raridades e são validadas por sua maior ou menor pátina de antiguidade, mas também um acervo cultural e espiritual que, como as sementes de trigo encontradas em túmulos egípcios, ainda está dotado de poder germinativo, sendo capaz de alimentar e avivar temas e problemas de nossa época. Todavia, se este vislumbre foi a recompensa da empreitada, também foi o castigo de uma temeridade.
De fato, para levá-la a cabo, mesmo ao nível bastante modesto da divulgação sem visada erudita, defrontamo-nos desde logo com uma série de dificuldades que convertiam o nosso despretensioso projeto em afoita aventura. De súbito, tudo pareceu faltar: fontes, textos, bibliografias, especialistas e tradutores. E na verdade faltam mesmo. O judaísmo, apesar de seus vínculos com o passado brasileiro, não tem ainda um lugar nas disciplinas universitárias do País. Assim, vimo-nos reduzidos às nossas próprias forças, e mais ainda às nossas deficiências, que por certo não foram inteiramente superadas embora não medíssemos esforços. O que aí está é produto de quase três anos de trabalho.
O nosso plano inicial previa uma antologia geral, em um volume, desde o pensamento bíblico até os nossos dias. Entretanto, como quisemos apresentar algo mais do que uma esquálida amostragem dos autores e obras selecionadas, vimo-nos a braços com um material que, mesmo com os nossos paupérrimos recursos, era de tal monta que nos obrigava a pensar em uma divisão do livro. Mas, ao nos decidirmos pelos dois tomos, verificamos também que, nas condições específicas da bibliografia acessível ao nosso leitor que não domine o hebraico ou o ídiche e não tenha um contato mais íntimo com a literatura especializada, em outros idiomas, todo o longo período que antecede a Ilustração judaica e o século XIX seria pouco mais do que um imenso vazio. Daí por que nos pareceu aconselhável neste caso estender as resenhas bibliográficas, tornando-as pequenos estudos, que naturalmente não nutrem pretensão de originalidade ou de erudição nem procuram sustentar teses particulares, buscando antes dar à guisa de introito uma informação mais pormenorizada sobre a moldura e o teor do tópico escolhido.
Já em relação à época que principia com Mendelsohn e vem até a modernidade, dada a existência de farta literatura em castelhano, inglês, francês ou alemão, em edições atuais e bem mais franqueadas ao público, o mesmo critério não se impunha, razão pela qual restringimos os apanhados sobre o autor ou o texto focalizado ao estritamente necessário, sem prejuízo, é claro, dos principais dados biográficos e bibliográficos. No mais, os dois volumes, nos quais s quisemos unir escolha histórica com a temática, obedecem aos mesmos princípios de organização, sendo na verdade tão complementares e interdependentes, na sua inteira autonomia, quanto podem sê-lo em um mesmo grupo duas etapas a tal ponto diversas que determinam não só uma relativa mudança de perspectiva, mas um corte essencial entre duas posturas de vida e de pensamento.
Assim, nesta tentativa de "compreender" panoramicamente o filosofar judeu, Do Estudo e da Oração procura configurar o mundo do tradicional, não só nas expressões rigorosamente conformes com os padrões, valores e ideias que o definiam, como no processo pelo qual, na medida em que, sob a forma de ética, mística, teologia ou filosofia especulativa, foi alargando o âmbito de seus conceitos e de sua cosmovisão, começou a sofrer fissuras no hermetismo e particularismo rituais e preceituais que encerravam o seu espaço sagrado, até que se viu colocado diante do dilema ou de abandonar o uso coerente da razão filosofante ou de renunciar às determinações básicas de sua singularidade histórica e religiosa, o que se ilumina de um modo radical e dramático em Spinoza, cuja opção constitui também no plano da filosofia judaica um fecho e um início.
De outra parte, se no autor da Ética o novo conhecimento científico e filosófico ocidentais e as correntes do pensamento judeu que vinham da escolástica medieval ou de mais longe ainda de Filo, por exemplo, confluíram e solucionaram-se harmonicamente no quadro de uma metafísica absoluta que englobou e secularizou os elementos característicos em um mecanismo perfeito de relojoaria cósmico-inteligente, onde Deus é naturalizado e as leis da natureza são divinizadas, tal resolução, por grandiosa e universalizante que fosse, apresentava-se ainda como um sistema fechado de relações altamente abstratas e na realidade só funcionava para o indivíduo; para a comunidade constituía apenas a grande premissa, a tese geral de um desenvolvimento que, na praxis social, a torna problemática e contraditória, gerando o surpreendente e por vezes doloroso senão trágico confronto que é delineado em O Judeu e a Modernidade, volume onde procuramos enfeixar algumas das principais reações e respostas filosóficas e ideológicas que balizam a caminhada de Israel como etnia, credo ou nação nos dois séculos subsequentes a Mendelsohn. Da adequação do intento com a realização, dirá o crítico e, mais ainda, o leitor.
Entretanto, por menos que nos tenhamos aproximado de nosso escopo, devemos dizer que nem isto seria atingível, se não contássemos com a boa vontade da Rutgers The State University, na pessoa do Diretor do Department of Hebraic Studies, Prof. Leon A. Feldman, que nos enviou originais, cópias em Xerox e traduções de obras inexistentes em S. Paulo; da Congregação Israelita Paulista e de seu Departamento da Juventude que nos franquearam suas bibliotecas; da Dra. Anita Novinsky, do Dr. Alfredo Hirschberg, Sr. Benjamin Neumann, Sr. Carlos Alberto Levi, os quais também nos deram acesso a seus livros e, entre eles, a algumas edições raras. Desejamos ainda externar os nossos agradecimentos a D. Rifka Berezin, da cadeira de Hebraico da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, e a suas alunas que colaboraram conosco; ao Dr. Seymour Feldman, da Rutgers University, que nos cedeu uma tradução inédita da obra de Gersônides; e particularmente à cooperação valiosa no trabalho de compilação bibliográfica, leitura e tradução de textos, que nos prestou a equipe da Editora Perspectiva. Todos estes esforços permitiram-nos elaborar a coletânea que aí vai pálido reflexo de uma meditação pelo menos quadrimilenar e cujas buscas têm muitas vezes iluminado "o homem cujo caminho está escondido" (Jó 3:23).
J. GUINSBURG