Prefácio
Quando um colega sugeriu o subtítulo de "Um Midrash Contemporâneo" para este livro, achei que seria muita presunção apropriar-me de um conceito tão venerado, originário de outra época, de outro mundo. O Midrash constitui um dos pontos altos na formação da herança literária judaica clássica. Ninguém pode escrever uma "Bíblia", criar um Talmud ou um Midrash sem correr o risco de cometer o pecado da paródia ou, na melhor das hipóteses, de uma imitação medíocre. Os capítulos reunidos nesta obra representam, contudo, um esforço consciente de seguir e refletir o Midrash tradicional, não apenas como literatura específica do gênero, mas pela correlação do método do Midrash com o encontro sempre renovado com a Torá.
Há numerosas conotações na palavra "Torá" no hebraico bíblico, no pós-bíblico e até mesmo no hebraico moderno. Aqui, é usada tanto para se referir ao Pentateuco (os primeiros Cinco Livros da Escritura Sagrada) quanto à somatória total do "ensinamento" (que é a verdadeira derivação etimológica da palavra) do judaísmo sobre a essência da vida e de como vivê-la.
Esse ensinamento, que se identifica como o teor da palavra do Eterno - o Mestre Supremo (Hamelamed Torá, "Aquele que ensina a Torá", é um epíteto de Deus na liturgia judaica) - aliado a todos os outros colhidos da Torá, é o "ensinamento" que os sábios discípulos de cada geração "ouviram" e apreenderam do "Mestre", no mais íntimo de seu ser.
A Torá foi legada à posteridade, não como sabedoria fechada, hermética, mas como uma conversa aberta e contínua, originando o eterno encontro da vontade e da palavra de Deus com o povo de Israel (e, por meio dele, com toda a humanidade), durante todas as suas históricas vicissitudes.
O evento do Sinai pode ter sido um acontecimento histórico único, mas o ato da Revelação, a exposição das verdades da Torá, nunca para.
Com nossa sintonia e receptividade nos encontros com a Torá recriamos a experiência de "ouvir" a Voz Divina. A tradição judaica garantiu esse encontro permanente, ao instituir a leitura semanal cíclica de uma porção da Torá, a chamada Parashat Hashavúa, "a porção semanal". Cada semana e sua "porção". Todo Shabat, a congregação inteira é convocada, e não apenas os eruditos religiosos e os sábios, para um encontro com o Mestre, que surge nas palavras da Escritura Sagrada.
Esse encontro semanal não é uma atuação unilateral para uma audiência que comparece, ouve passivamente e volta para casa. O primeiro ato da Revelação no Sinai tampouco foi assim. Deus não entregou seus mandamentos aos filhos de Israel, no deserto, sem antes ter um extenso diálogo com eles (ver capítulo "Obediência cega não basta"). Para esse encontro semanal com a palavra de Deus, a comunidade (e cada um de seus membros) não comparece de mãos vazias, intimidada ou calada diante da Onipresença Divina. Não é o cenário de um poderoso rei dando ordens aos seus súditos, através de um solene decreto real, e, sim, o de um Mestre sábio e carinhoso, que espera que seus pupilos estejam sempre atentos, questionando, investigando e discutindo cada palavra e ideia. É precisamente esse encontro que transforma a palavra de Deus
em ?Torá?.
O vocábulo "Torá", como já foi dito, vem da mesma raiz dos termos morê ou morá (professor ou professora, em hebraico). Deus, o Doador da Torá, é o Mestre Supremo; nós somos seus pupilos. Essa interação entre professor e alunos faz com que a Torá seja constantemente recriada
e revitalizada.
Trazemos para essa "sala de aula", que brota sempre e onde quer que se estude Torá, a dimensão plena de todo o nosso ser. Fazemos perguntas e buscamos respostas. Todas as perguntas são permitidas e até mesmo incentivadas. Novos entendimentos surgem desse encontro com o texto, que contém mais de uma resposta a qualquer pergunta. Segundo os rabinos antigos, "a Torá tem 70 faces". Se procurarmos com afinco, encontraremos a face que buscamos.
Deus falou uma vez, mas essa "única vez" significa sempre. Com a ajuda da metodologia do Midrash somos capazes de ouvi-la novamente, hoje. Todos os dias. É por isso que o Midrash se tornou uma das expressões mais importantes do vocabulário da vida e da religião judaica - ele ensina a "ouvir" sempre "sons" novos dentro da única Voz Eterna.
Os sábios que criaram o Midrash não foram ao encontro com a Torá de mãos vazias. Ao contrário, trouxeram toda sua experiência humana e sabedoria acumulada, suas dúvidas e sofrimentos, suas divagações e considerações. O encontro resultou numa compreensão revigorada, em novas interpretações que surgiram como respostas diretas a perguntas imediatas. A arte do Midrash está na habilidade de servir vinho envelhecido em embalagens novas e modernas, para transplantar alguns antigos segredos Divinamente inspirados - de luta e alegria, de celebração do tempo e da vida - para as nossas próprias vidas, limitadas e muitas vezes melancólicas.
O Midrash é o elo que unifica a corrente da existência, inicialmente intuída na Bíblia e que permanece atual até hoje. O que teria sido do mundo sem o Midrash? Em certas ocasiões, parece que se a corrente fosse quebrada, no mesmo instante o mundo deixaria de existir; que a continuidade em ouvir esse diálogo Divino-humano ? que começou com o pronunciamento das palavras "No princípio, ao criar Deus os céus e a terra" - é vital para nossa própria existência, hoje. Uma existência assaz necessitada de um "princípio" e de um "fim", de um destino e uma destinação, de um significado superior ao paradoxal.
Uma contribuição modesta, para essa forma de ouvir a Torá, é oferecida nos capítulos seguintes. A nossa geração talvez não seja de gigantes elevados no estudo da Torá, mas continuamos a ser um elo da mesma corrente. Seria falsa-modéstia definir nossa geração como desprovida de espiritualidade, nada tendo a acrescentar ao eterno e contínuo diálogo com a Torá. De fato, podemos ser "anões" se comparados aos "gigantes" das gerações anteriores, mas, por sermos "anões carregados nos ombros de gigantes", nossos horizontes são ilimitados. Embora amedrontados, temos o privilégio de viver numa época em que podemos colher o fruto do trabalho dos grandes gênios das ciências físicas, bem como daquelas ligadas ao espírito humano e à visão social.
Também no mundo judaico, como nunca antes, possuímos muitos dos maiores tesouros da sabedoria dos nossos ancestrais. Bibliotecas e livrarias estão repletas de obras que costumavam ser classificadas de "edições raras"? e que eram privilégio de poucos. Preciosos tesouros espirituais e intelectuais estão agora ao alcance de todos.
Somos os herdeiros diretos de alguns dos períodos mais estimulantes da vida e da criatividade espiritual judaica. Do ponto de vista cronológico, vivemos na era pós-maskilismo material, centrada no Iluminismo; do pós-chassidismo místico, centrada na caridade; e do pós-mitnagdismo racional, centrada nos estudos. Historicamente, somos os sobreviventes imediatos do Holocausto e testemunhas do milagre vivo do renascimento de Israel.
Raramente houve época de tensão histórica e espiritual tão extraordinária.
Sendo o que somos, nossa geração encontra novamente a Torá. Alguns estão fascinados por ela, não apenas como forma de conhecer o passado, por curiosidade cultural ou aspirações nostálgicas, mas principalmente como forma de perguntar, com toda a franqueza: o que a Torá tem a nos dizer hoje?
Seguimos para esse encontro como pessoas modernas e receptivas, plenamente conscientes, contudo, de que não nascemos hoje, ou que subitamente caímos de paraquedas do nada numa ilha deserta. Sabemos que nos antecedem 3.000 anos de convivência com a Torá e seus ensinamentos, e que existem fontes insondáveis de meditação e sabedoria, realizações culturais fascinantes e orientação moral esclarecedora, das quais podemos usufruir nessa preciosa herança.
Estantes e mais estantes repletas de comentários sobre a Torá, frutos das melhores mentes judaicas de muitas gerações, aguardam nossa consideração, mas, lamentavelmente, com suas lombadas voltadas para nós. Que segredos contêm? Que tipo de calor irradiam? Será que devemos tentar descobrir? E se tentarmos, seria possível aplicar alguma coisa às nossas próprias vidas?
Os sábios do Midrash buscaram as respostas para essas questões naquela época; gostaríamos de tentar fazê-lo, do nosso jeito modesto, agora, na nossa época. Continuamos a tentar, cientes e não obstante a enorme lacuna existente entre nossos esforços e possíveis resultados.
Nossos esforços podem ser classificados tanto como exegese (comentário ao texto) quanto eixegese ("violência" ao texto) - isto é, tanto as interpretações extrínsecas ao texto como as intrínsecas a ele -, ao pesquisarmos todas as fontes à nossa disposição: antigas, medievais e modernas. Nosso objetivo, contudo, é claro: referir-nos à Torá da forma como ela fala conosco, hoje.
Os capítulos deste livro baseiam-se na coluna semanal do mesmo título, Tora Today, publicada em 1984-5, na edição local e internacional do Jerusalem Post. As centenas de cartas que chegaram ao Post e ao autor, vindas de todos os cantos do mundo, tanto de judeus quanto de não judeus, são prova de que a palavra da Torá é atualmente procurada em toda parte, por pessoas de todas as classes sociais.
O encargo semanal de estudar meticulosamente a Parashá, consultando inúmeros comentários; a seleção do tópico para a semana e a tentativa de compartilhá-lo com outros; a redação do texto em forma de "leitura leve" como convém a um jornal diário, não foi tarefa fácil. Não posso dizer, contudo, que não tenha sido tarefa prazerosa. As cartas e telefonemas de tantos leitores foram muito animadores e gostaria de aproveitar o ensejo para agradecer a todos pela bondade e interesse. Desejo também desculpar-me pela impossibilidade de responder pessoalmente à correspondência tão apreciada.
É especialmente agradável a incumbência de agradecer a participação ativa e a contribuição de ideias que surgiram durante as discussões sobre a Torá, com minha esposa e família, e diversos convidados judeus e não-judeus, ao redor da nossa mesa de Shabat. Agradeço a meu argumentador filho Avraham Deuel, às minhas talentosas e cultas filhas e seus maridos, Bitha e Dov Harshefi, Emuna e Benyamin Elon, Batsheva e Gilead Seri e meus maravilhosos netos.
Este trabalho não poderia ter sido completado sem a participação vital de minha querida esposa e companheira Penina Peli, revisora e editora dos capítulos deste livro. Seus comentários sobre as porções semanais da Torá foram veiculados, toda sexta-feira, no programa de rádio em língua inglesa da Voice of Israel (Voz de Israel), de Jerusalém.
Os editores do The Jerusalem Post, Erwin Frankel e Ari Rath, e sua equipe de edição, especialmente Joe Blumberg, Douglas Davis, David Gross, Sasha Sadan e Hanan Sher merecem especiais agradecimentos pela valiosa e cordial cooperação em levar Torah Today a dezenas de milhares de leitores do mundo inteiro. Robert Bleiweiss, presidente da Bleiweiss Communications, em Calabassas, na Califórnia, Aliza Yunick e Cybil Kaehimker da Universidade Ben Gurion, e Raihanna Zaman da Universidade Cornell, todos merecem agradecimentos por sua ajuda durante as várias etapas da preparação do manuscrito desta publicação. Agradeço, também, pelas correções cuidadosas e acuradas, ao Rabino Israel C. Stein, de Bridgeport, Connecticut, e ao Dr. Faezeh Foroutan, de Washington, D.C.
Sou grato ao Todo-Poderoso por assegurar-me uma parte de Sua Torá, quando me permitiu escrever aquelas colunas, numa época muito significativa de minha vida. Escrever Torah Today semanalmente alertou-me, forçando-me, até, a definir - apesar de muitos obstáculos - um tempo para estudar. Devido a Torah Today, ganhei novos amigos maravilhosos, que contribuíram para a publicação deste livro. Dentre eles, cito o Dr. Michael Neiditch, o competente diretor da Comissão para a Continuidade da Educação Judaica da B'nai B'rith International. Para Robert Teitler, presidente da Information Dynamics, que não considera a publicação de importantes livros judaicos um empreendimento meramente comercial, mas um trabalho de amor. A amizade e colaboração do renomado artista Phillip Ratner também surgiu graças à sua reação entusiasmada a Torah Today.
Agradecimentos especiais são devidos a Ernesto Strauss, da Editora B'nai B'rith do Brasil, por sua sábia e amiga persistência e paciência em providenciar a primeira tradução e publicação de Torah Today em português (nos idos de 1987), a primeira de uma série de traduções do livro.
Pinchás Hacohen Peli
Jerusalém, Sivan de 5746 - Julho de 1986