ÍNDICE
Apresentação
Prefácio
Tributo
Introdução
Bereshit
O que é a Torá?
A revolução de Copérnico e a posição do ser humano
Por que coisas ruins acontecem às pessoas boas?
O primeiro casamento: superando a solidão e o isolamento
Por que foi proibida a fruta proibida?
O ser humano se assemelha mais a Deus ou aos animais?
Os lauréis e os limites da Ciência
Nôach
Expandir-se ou retrair-se? Família x Mundo
Palavras constroem mundos (continuação)
O vegetarianismo e a Bíblia
Dois agnósticos, mas somente um deles é justo
Israel e as nações
O Dilúvio e a Torre de Babel
Lech Lechá
Nacionalismo x Universalismo: o dilema interno de Abrahão
Abrahão: inovador ou continuador?
Tirar vantagem é o mesmo que escravizar
O milagre da fé
Contrato ou pacto?
Nação ou religião?
Vaierá
O silêncio de Abrahão
O sacrifício final
Afinal, de quem foi o sacrifício: de Abrahão ou de Isaac?
Isaac e Ismael: dois destinos partilhados
O poder e as limitações de um pai
Chaiê Sará
A bênção da velhice: pais e filhos
O significado de um túmulo
O que fez Labão sair correndo?
Abrahão é o rabino porque Sara é a rabanit
Casamentos arranjados x Casamentos românticos
Toledot
Com quem podemos estabelecer tratados?
A escolha de Rebeca: engano em nome dos Céus
A verdade por trás das máscaras
Talvez Esaú seja o primeiro impostor
O homem propõe e Deus dispõe
Vaietsê
O primeiro monumento à vida e à eternidade
Será que alguém pode realmente voltar para casa?
Podemos barganhar com Deus?
O que você sonha traduz o que você é
O que importa não é o que você tem, mas o que você é
Vaishlách
Em busca de Deus e em busca de si mesmo
Uma releitura de Esaú: identidade sem continuidade
Quem são os verdadeiros terroristas: Simão e Levi
ou Sechém e seus súditos?
Vaieshev
Em que se constitui a culpa?
Judeus e não Rubeus
Sonhos e visões
Mikêts
A habilidade de escutar tanto seus próprios sonhos
quanto o dos outros
Por que José não mandou um e-mail para seu pai?
Vaigásh
As lágrimas de José e Benjamim
Uma reunião de fidelidade e lágrimas
A verdadeira arte da negociação
Por que choramos?
Sobre carros e animais, trens e aviões,
culpa e perdão, pais e filhos
A distância torna o coração mais afetuoso ou mais distante?
O mau-olhado não te controlará
Vaichí
O começo do fim
A quem você pertence?
Por que abençoamos nossos filhos como "Efráim e Menashê"?
O milênio e o messianismo normativo
Comentaristas citados nesta obra
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O vegetarianismo e a Bíblia
"Tudo que se move vos servirá de alimento, como toda verdura e erva que já vos dei."
Gênesis 9:3
Qual é a atitude judaica em relação ao vegetarianismo? Apesar da predileção por jantares de carne no Shabat e nas festas, será que é espiritualmente preferível que nos alimentemos somente com arroz, feijão, couve-flor e cenouras?
Com a criação de Adão, o Todo-Poderoso ordena à humanidade, bem como aos animais, que comam apenas frutas e vegetais. Somente após o dilúvio e o resgate de Noé é que Deus, depois de abençoá-lo para que seja frutífero, se multiplique e volte a preencher a terra, declara que, de agora em diante, lhe é permitido comer de cada ser vivente que se move.
Eu diria que esta permissão é, na verdade, uma concessão. Ela é manifestada após a afirmação do Eterno de que "o impulso (iétser) do coração do ser humano é mau desde sua mocidade", a inescapável conclusão do Eterno como resultado da perversão e violência que imperavam antes do dilúvio. O Rabino Joseph B. Soloveitchik dizia que a Torá não somente registra o caminho do homem buscando compreender o Divino, mas documenta também Deus em Sua crescente compreensão, e mesmo desapontamento, com a fraqueza e corrupção do ser humano.
Essa concessão a Noé é seguida imediatamente pela ordem de não comer um membro de um animal vivo ou de beber sangue, de não cometer suicídio e de não tirar a vida de outro ser humano. Com efeito, Deus reconhece que já que o impulso e a habilidade de destruir se mostraram um elemento da personalidade humana, que pelo menos ele fosse expresso no tirar a vida de um animal, e não na destruição de seres humanos.
Visto sob esta perspectiva, as leis de cashrut servem para limitar nosso consumo de carne, como um lembrete da ambiguidade moral envolvida no próprio consumo dela. Muitos animais, pássaros e peixes são completamente proibidos, e aqueles que nos são permitidos precisam ser abatidos de uma forma muito mais espiritual e humana do que a maneira pela qual os animais são normalmente mortos por todo o mundo.
Na verdade, as leis de cashrut, conforme expressas na Bíblia, estão certamente relacionadas à elevação de nossa sensibilidade para com o mundo animal. São principalmente os animais carnívoros e as aves de presa que nos são proibidos. Além disso, o consumo de sangue é proibido. Mesmo a carne que nos é permitida deve ser salgada e enxaguada a fim de remover tanto sangue quanto possível, porque "sangue é vida". Finalmente, carne e leite não podem ser comidos juntos, sendo costume entre os judeus ashkenazitas da Polônia manter um intervalo de 6 horas entre comer carne (mesmo que seja de ave) e fazer uma refeição de leite, pois "não cozinharás a carne do filho embebida no leite da mãe" (Êxodo 34:26). Isto é um apelo à compaixão e à sensibilidade estendida ao mundo animal.
O primeiro Rabino-Chefe de Israel, o Rabino Abraham Isaac Hacohen Kook, percebia, mesmo nessa orientação, uma censura àquele que se alimenta de carne. Ele explica (de acordo com a interpretação do Nachmânides) que, quando os judeus ainda estavam no deserto e o Santuário (lugar dos sacrifícios) estava literalmente no meio do povo, a única carne que se permitia comer era a dos sacrifícios. Obviamente, isso limitava a quantidade de carne usada para alimentação. Somente depois que deixaram o deserto e devido ao fato de muitos israelitas morarem longe do Santuário é que foi permitido comer carne não proveniente dos sacrifícios, mas somente de acordo com as leis da cashrut.
Além disso, o Rabino Kook explicou que nas próprias palavras da Bíblia encontra-se uma advertência:
"Quando o Eterno, teu Deus, expandir tuas fronteiras... e disseres 'comerei carne' porque tua alma está ávida por carne..."
É somente por causa de tua "avidez" por carne - sem dúvida, um comentário nada lisonjeiro - que Deus permitiu aos israelitas comer carne. Por fim, ele diz que, no futuro período do Terceiro Templo, voltaremos ao ideal original de vegetarianismo e a única oferenda no Templo Sagrado será de grãos - a oferenda de Minchá.
Explicando o sacrifício animal de uma forma geral, o Rabino Kook defende que o mundo animal recebe seu ticun (conserto espiritual) ao ser trazido ao altar do Eterno, uma vez que, sendo desprovido de razão, os animais não podem se elevar, exceto por meio de algo que seja feito com eles. No futuro, entretanto, quando "a terra estará repleta do conhecimento do Eterno, como as águas cobrem o mar" (Isaías 11:9), uma abundância de conhecimento se espalhará e alcançará até a vida animal. E, como nossos profetas ensinam que durante a Era Messiânica "Não causarão dano e nada destruirão em Meu santo Monte" (ibid.), é inconcebível que a vida animal seja destruída para servir ao Divino. Nesta época, "as oferendas (de farinha e vegetais) de Judá e de Jerusalém serão prazerosamente aceitas pelo Eterno" (Malaquias 3:4).
Uma noção similar pode ser encontrada nos escritos do Rabino Chaim David Halevi. Ele afirma - e cita o Rabino Kook como prova para seu argumento - que este será apenas o primeiro estágio da Era Messiânica, que incluirá sacrifícios animais no Terceiro Templo, uma vez que no primeiro estágio messiânico o mundo funcionará e existirá como é agora, incluindo os pecados e a necessidade de sua expiação. Entretanto, uma vez que a Era Messiânica alcance o seu clímax espiritual de arrependimento universal, os sacrifícios de animais se tornarão uma mera recordação do período anterior, mais primitivo. Afinal de contas, ele escreve, se não há pecado, qual é a necessidade de sacrifício animal para expiação?
O Rabino Halevi conclui que, no período do Terceiro Templo, a Presença Divina será revelada em todo Seu esplendor e glória, e não haverá outro sacrifício além da oferenda de Minchá, composta de farinha e óleo.
Há um costume muito bonito que consiste em cobrir a faca com a qual se corta a chalá enquanto recitamos a Bênção de Graças Após as Refeições, a fim de destacar nossa repulsa por implementos que podem ser usados para matar e destruir. Que chegue logo o tempo em que as espadas se transformarão em arados e as lanças em foices, quando não haverá mal nem destruição no mundo inteiro e as únicas facas serão para fatiar a chalá a ser comida com leite e mel - não com carne - em homenagem ao Shabat e às festas!
* * *
O que é a Torá?
"No princípio, Deus criou os céus e a terra."
Gênesis 1:1
Por que a Torá, a palavra de Deus dada a Moisés como Seu legado ao povo judeu, começa com a narrativa da Criação, passando pelos Jardins do Éden e pela Torre de Babel? Ela poderia, e talvez até devesse, ter começado do momento em que os judeus receberam seu primeiro mandamento como nação, após a saída do Egito - "Este será para vós o primeiro dos meses" (Êxodo 12:2), referindo-se ao mês de Nissan, quando Pêssach, a singular festa judaica que comemora nosso nascimento como nação, é celebrado. Afinal de contas, a Bíblia não é essencialmente um livro dos mandamentos? Assim questiona o Rashi no começo de seu comentário sobre o livro de Bereshit.
Eu gostaria de sugerir três respostas clássicas a essa questão, e cada uma delas traz uma contribuição importante à pergunta que inicia esse capítulo: O que é a Torá?
A resposta do Rashi a esta questão constitui a crença sionista.
Começamos com a narrativa da Criação porque, se as nações do mundo apontarem seus dedos para nós clamando que somos ladrões, dizendo que roubamos esta terra dos canaanitas e de outros povos nativos, nossa resposta será de que a terra e o mundo inteiro pertencem a Deus, por ter sido Ele quem os criou. Ele pode entregar qualquer parte da terra a quem, aos Seus olhos, a merecer. Sob essa perspectiva, o Rashi, de forma brilhante, deu a um versículo universalista uma interpretação nacionalista. Ele definiu nosso direito à Terra de Israel como uma consequência direta do primeiro versículo da Torá!
Podemos acrescentar às palavras do Rashi mais uma dimensão. Ele conclui essa interpretação afirmando: "Ele pode entregar qualquer parte da terra a quem, aos Seus olhos, a merecer." Essas palavras podem significar "a quem Ele quiser", isto é, a Israel, porque Ele fez essa escolha arbitrária, ou podem significar "a quem for moralmente merecedor desta terra", o que implica que teremos direito a ela somente se nossas ações forem moralmente dignas. A história judaica ratifica essa segunda interpretação com o fato de termos sofrido dois exílios, sendo que o segundo durou cerca de 2.000 anos. Se essa é verdadeiramente a explicação adequada, as palavras do Rashi nos proveem uma advertência e uma promessa.
O comentarista Nachmânides também debate essa questão. Para ele está bastante claro que o fato de o mundo ter sido criado por Deus é o ponto central da nossa teologia e, assim sendo, era essencial que essa afirmação estivesse presente no primeiro versículo da Torá.
A Torá nos apresenta uma completa filosofia de vida. As sete primeiras palavras da Torá nos dizem, da maneira mais clara, que há um Criador do Universo e que o nosso mundo não é consequência de um acidente, "um conto relatado por um ignorante, repleto de estrondos e fúria, sem nenhum significado", uma casual convergência de elementos químicos e de gases em explosão. É um mundo que teve um começo (e isso implica que também terá um fim), um propósito e uma razão de ser. Além disso, será que poderíamos existir, por um momento que fosse, sem a criação dos céus e da terra? Nossa própria existência depende do Criador, e, por nos ter criado, Ele tem o direito de cobrar que vivamos de uma determinada forma e cumpramos Suas leis. O primeiro versículo da Torá estabelece a base para tudo que se segue.
Antes de tudo, há um princípio; em segundo lugar, há um Criador que criou os céus e a terra; em terceiro lugar, tudo, nos céus e na terra, deve sua existência ao Criador; em quarto lugar, é plausível que haja comportamentos e ações que o Criador deseja e espera de Sua criação. Segundo Nachmânides, toda a nossa estrutura metafísica se baseia no versículo inicial da Torá. Afinal de contas, como Criador, Ele tem direitos de propriedade. Ele nos possui. Ele é o dono de nosso ser. Ele merece que vivamos nossa existência de acordo com Sua vontade e não meramente de acordo com nossos desejos subjetivos e, até mesmo, egoístas. Ele merece não só que O abençoemos antes de partilhar qualquer elemento que Seu universo nos ofereça, como também que assumamos o compromisso de manter o estilo de vida que Ele nos recomenda. Nachmânides continua e nos ensina que, do mesmo modo que Adão e Eva foram exilados do Jardim do Éden após comerem do fruto que lhes fora proibido, a punição por desobedecermos Suas leis será a alienação e o exílio, processo experimentado com muito sofrimento pelo povo de Israel. Essa afirmação é também um elemento crucial da teologia judaica.
O Midrash (Bereshit Rabá 12) oferece uma terceira explicação. No versículo inicial está implícito o princípio fundamental de que devemos viver: "No princípio, Deus criou os céus e a terra." Nessa sentença, "criou" é o verbo; o mundo nos revela a função criativa do Divino. Partindo do princípio de que devemos seguir Seus caminhos, nosso primeiro contato com Deus nos ensina que, assim como Ele criou, nós também devemos criar; assim como Ele, pairando sobre o abismo da escuridão, criou a luz, também nós, criados à Sua imagem e semelhança, devemos remover todos os bolsões de escuridão, caos e vazio, e introduzir neles luz, ordem e significado. Desse modo, o primeiro versículo do Gênesis é também o primeiro mandamento, uma ordem emitida por Deus para todos os seres humanos criados à Sua imagem: devemos criar, ou melhor, recriar o mundo, tornando-o mais perfeito, em virtude da "imagem de Deus" pela qual fomos criados. O Midrash vê os seres humanos, de uma forma geral, e os judeus, em particular, como uma força criativa. Nossas energias criativas - religiosas, éticas, científicas e artísticas - devem trabalhar em harmonia com o Todo-Poderoso para aperfeiçoar um mundo que ainda não está perfeito, para trazer de volta a paz e a harmonia que existiam no Éden.
Frequentemente, os críticos da Bíblia cometem dois erros. Eles desvestem a Torá de seu contexto e de seu subtexto, perdendo de vista o que a Torá realmente quer dizer. Destacam a mecânica gramatical das palavras e desprezam sua majestade, a chama, a visão e a mensagem. O que devemos lembrar é que, essencialmente, a Bíblia não é apenas um livro de leis, por mais importantes que elas sejam, e certamente não foi escrita por um ser humano em sua débil tentativa de compreender Deus e a Criação. É, na verdade, o Livro dos Livros, emanado de Deus, que nele dá instruções e direção para nossas vidas. Ela revela não somente o que a humanidade é, mas, muito mais do que isso, o quanto ela deve se esforçar para vir a ser; ela nos ensina que não devemos apenas nos encarregar do mundo, mas sim, trabalhar para tentar aperfeiçoá-lo e torná-lo digno da majestade do Divino.
* * *
Afinal, de quem foi o sacrifício: de Abrahão ou de Isaac?
"E andaram ambos juntos."
Gênesis 22:8
Na Akedá, de quem foi o sacrifício maior: de Isaac ou de Abrahão? Instintivamente, a primeira resposta que vem à mente é que foi o de Abrahão. Afinal de contas, a porção da Torá tem início com as palavras: "E Deus testou a Abrahão". De fato, Isaac era o filho ansiosamente esperado por Abrahão por toda sua vida, a afirmação de sua fé e a promessa de seu futuro.
Qualquer pai, e principalmente Abrahão, preferiria morrer a ver seu filho morrer. Se Deus tivesse dito: "Você tem uma escolha: você ou seu filho", Abrahão teria feito o que milhares de outros pais fizeram - colocaria o filho em segurança e subiria sozinho ao monte Moriá, agradecido a Deus por saber que seu filho sobreviveria. Entretanto, como podemos menosprezar a profundidade do sofrimento de Isaac? Da vida de quem se está tratando? Qual é a carne que está amarrada ao altar, transformada numa oferenda a ser queimada? A do pai ou a do filho? E independente de quão doloroso possa ser testemunhar a tragédia, poderíamos negar que o verdadeiro sacrifício é o daquele cujo corpo subirá em chamas? Isaac, inegavelmente, é tão heroico quanto Abrahão. E está claro que Isaac entende perfeitamente o que vai ocorrer. De acordo com o Rashi, ele tinha 37 anos quando ocorreu a Akedá, idade suficiente para lutar contra a vontade de seu pai ou fugir dali. E mesmo se o Ibn Ezra, que afirma que Isaac tinha 12 anos naquele momento, esteja mais coerente com a história bíblica, ele ainda poderia chorar, protestar ou apelar para a misericórdia de Abrahão. Nenhuma reclamação da parte de Isaac é mencionada na narrativa bíblica. Pelo contrário, mesmo depois que Isaac está, presumivelmente, consciente do que está para acontecer, o texto afirma: "E andaram ambos juntos".
Além do fato de que o sentimento paterno que há em todos nós se identifique com Abrahão e considere como sendo dele o maior sacrifício, há uma diferença essencial entre o pai e o filho, que me foi mostrada por meu rabino Moshe Besdin.
Foi a voz de Deus que Abrahão ouviu, dando a ordem para que levasse seu filho, seu único filho, e o trouxesse como uma oferenda de elevação. Quando Maimônides quer provar a veracidade da profecia, ele se volta para o episódio da amarração de Isaac. Se Abrahão não acreditasse na absoluta verdade da profecia, teria, mesmo assim, erguido sua mão para matar seu filho? Teria sacrificado todo o seu futuro, bem como o futuro da humanidade, a não ser que estivesse absolutamente seguro da origem Divina da ordem?
Mas, podemos dizer o mesmo sobre Isaac? Afinal de contas, ele ouviu a ordem, mas não de Deus, e sim de seu pai.
Um olhar atento ao que transparece entre as linhas do texto da Bíblia provê uma ligeira percepção do relacionamento único existente entre este pai e este filho.
Há uma temerosa suspeita na mente de Isaac, uma crescente percepção do que está para acontecer, um desejo de confrontar o pai (embora de forma muito delicada) e depois uma profunda aquiescência, até mesmo uma unidade de propósito e missão. Abrahão acorda bem cedo, de manhã, para levar seu filho à fatídica jornada. Sobre o que falam, se é que falam, não é mencionado; mas, no terceiro dia, depois que Abrahão dispensa os dois ajudantes de acompanhá-los, Isaac começa a falar. E o que ele diz e o que não diz é algo de raro e sensível significado.
A professora Nechama Leibowitz nos ensinou que, quando a Torá narra um diálogo e quer informar a mudança da pessoa que está falando, ela o faz usando a palavra Vaiômer, "E ele disse"; afinal, a Torá foi escrita de uma forma que não apresenta aspas. No terceiro dia de sua jornada, Isaac percebe que seu pai está preparando a faca e a lenha para a oferenda. Pela primeira vez, desde o início da caminhada, a Torá revela as palavras de Isaac.
Vaiômer, começa o texto, "E Isaac falou a Abrahão, seu pai". Esperaríamos, agora, encontrar as palavras ditas por Isaac, mas isso não acontece. Em vez disto, novamente Vaiômer, mas desta vez com uma palavra: Vaiômer avi, "e disse: Meu pai!". Por que temos um Vaiômer após o outro sendo que ambos estão se referindo às palavras ditas pelo mesmo locutor, e sabendo que Isaac, afinal, não diz absolutamente nada após o primeiro Vaiômer? É como se tivéssemos aberto e fechado aspas sem qualquer palavra entre elas. Neste ponto da narrativa, Abrahão toma conhecimento do que diz Isaac, dizendo "Eis-me, meu filho."
Agora vem o terceiro Vaiômer de Isaac neste contexto: "E disse: Eis o fogo e a lenha, e onde está o cordeiro para a oferta de elevação?"
Qual o sentido do Vaiômer?
Aparentemente, Isaac suspeita do verdadeiro propósito da jornada desde o momento em que o pai o acorda e lhe diz que estão de saída. Ele, trêmulo, fica em silêncio pelos três primeiros dias, para talvez ouvir outra explicação ou para receber a trágica confirmação do pior pesadelo. Compreensivelmente, Abrahão não pode explicar o que pretende fazer. Isaac anseia por fazer a pergunta, mesmo que isto signifique que ele ouvirá o pior. Nada, pensa ele, seria melhor do que permanecer nesta incerteza. Mas como pode um filho respeitoso perguntar ao pai: "Você está planejando me sacrificar?" Dada a proximidade que Isaac sempre sentiu de seu amado pai, que esperou até aos 100 anos de idade para ter um filho com Sara, como poderia ele sequer começar a formular tal impensável questão?
No terceiro dia, Isaac tenta: Vaiômer mas somente um "Aaaah" sai de sua boca - ele consegue apenas gaguejar e balbuciar, mas se sente incapaz de formular esta horrível ideia. Por fim, ele tenta novamente: Vaiômer, e desta vez ele acrescenta "Meu pai!". Mais uma vez ele para no meio da sentença, mas Abrahão gentilmente lhe responde: "Eis-me, meu filho." Isto finalmente dá a Isaac a possibilidade de delicadamente sugerir: Vaiômer, e ele diz: "Eis o fogo e a lenha, e onde está o cordeiro para a oferta de elevação?" A resposta de Abrahão não deixa espaço para qualquer pergunta posterior: "Deus proverá para Si o cordeiro para a oferta de elevação, meu filho".
O que é realmente maravilhoso é a frase seguinte: "e andaram ambos juntos" (iachdáv). Somos atingidos pelo impacto da palavra "juntos" para descrever uma jornada para a qual os dois se encaminham com igual dedicação, apesar do conhecimento que têm, de que somente um deles voltará vivo.
Também nos impacta a prontidão de ambos para cumprir esta determinação tão inexplicável, ordenada por Deus, a despeito do fato de que o pai a ouviu do próprio Deus e o filho a ouviu somente de seu pai.
Diante destes fatos inquestionáveis, Isaac emerge como um verdadeiro patriarca, um modelo e um paradigma para todas as futuras gerações. Afinal de contas, nossas tristes orações penitenciais (selichót e kinót) atestam o fato de que Isaac é, na verdade, o modelo de Kidush Hashem (Santificação do Nome de Deus provocada por alguém que se deixa matar por sua fé e por sua nação) no decorrer de nossa história umedecida por nossas lágrimas e enrubescida por nosso sangue.
Teriam aqueles que se deixaram torturar e assassinar pelas espadas dos cruzados, em vez de aceitar a conversão que lhes tentaram impor a força, escutado diretamente a voz de Deus? Não seria mais correto dizer que estavam atendendo a seus pais, seus professores e aos textos tradicionais que definiram e delimitaram os limites dentro dos quais se pode e se deve entregar a própria vida pela glorificação do Nome de Deus? Abrahão pode ser o primeiro judeu, mas Isaac é o primeiro filho judeu, o primeiro estudante judeu, o primeiro representante da Messorá (a tradição transmitida de pai para filho, de mestre para discípulo), cuja dedicação à morte emana, não da ordem que ouviram diretamente de Deus, mas de sua adesão à Tradição Oral.
A essência do judaísmo não é o de uma religião baseada em visões beatificantes ao longo do caminho de Damasco ou mesmo de Jerusalém. Nossa religião é aquela em que a verdade é transmitida de uma geração à outra, de pai para filho, de mestre para discípulo. E, para nós, o paradigma começa exatamente na Akedá. Quem é o primeiro judeu? Abrahão. Mas quem é o primeiro judeu histórico, o primeiro representante da cadeia histórica do ser judeu, cujos elos foram forjados pelo arcabouço do compromisso e do sacrifício? O filho de Abrahão, Isaac.