Introdução à Edição Brasileira
As obras de Maimônides impressionam pela quantidade, qualidade, profundidade e diversidade. Rabi Moisés, filho de Maimon (1135–1204), o “Rambam”, foi talmudista, codificador das leis judaicas, filósofo, matemático e médico. Além de tudo isso, possuía um talento ímpar para colocar e organizar ideias no papel.
Suas notáveis contribuições quase nos levam a acreditar que Maimônides é o nome de toda uma academia de eruditos de várias disciplinas, ao invés de ser o nome de um único indivíduo.
Isto nos leva a imaginar que Maimônides teve uma vida que lhe permitiu desfrutar de todas as condições favoráveis para dedicar-se exclusivamente ao estudo da Torá e aos assuntos ligados à intelectualidade de modo geral. Entretanto, a realidade foi bastante diferente. Aos 13 anos sentiu, pela primeira vez, o gosto amargo do exílio, ao ter de deixar o lar de origem e vagar por vários países junto com seus irmãos durante quase uma década, em busca de um lugar que lhes oferecesse condições mínimas para uma vida digna. Sabemos que, durante a Idade Média, a maioria das comunidades judaicas – sefaraditas ou ashkenazitas – não dispunham de elementos para satisfazer as condições básicas de sobrevivência de sua gente, ora devido ao fundamentalismo islâmico, ora devido aos rigores das cruzadas. E é nesse cenário que Maimônides desenvolve sua sabedoria em todos os campos de conhecimento acima mencionados, desafiando todos nós a produzirmos intelectualmente muito mais, se levarmos em conta as nossas “dificuldades”.
Editar o Guia dos Perplexos em português não foi uma tarefa fácil, devido ao grau de dificuldade de seu conteúdo e sua compreensão pelos diferentes tradutores (esta obra se originou de uma versão em inglês). Portanto, a primeira providência foi revisá-la pela versão em hebraico do Rabino Shemuel ibn Tibon (que foi aluno direto de Maimônides) e do Dr. Iossef Kapach, um dos maiores estudiosos e pesquisadores contem-porâneos da obra de Rambam. De uma forma geral, o presente trabalho atende a estas duas fontes. Ainda assim, fizemos alguns ajustes para garantir a compreensão dos conteúdos desta coletânea.
Com o intuito de enriquecer a leitura, foi inserida a carta de Maimônides a seu aluno, o Rabino Iossef ibn Aknin, onde o mestre revela que “…tua ausência me inspirou e induziu a compor essa obra para ti, e para os que a ti se assemelham, apesar de não serem muitos…”. Ibn Aknin era versado nos estudos bíblicos, talmúdicos, em matemática, lógica, filosofia e, como seu mestre, trabalhou como médico em Alepo, Síria. As inquietudes intelectuais de seu discípulo levou Maimônides a escrever “O Guia dos Perplexos” para aqueles que estão incomodados com alguns conflitos entre o judaísmo e a filosofia, entre as ciências e os estudos bíblicos. Embora fossem poucas as pessoas com perfil semelhante ao de Ibn Aknin, Maimônides estava comprometido com a necessidade de dirimir estas dúvidas, mesmo que para poucos. Atender as diversidades do intelecto do ser humano era a meta do escritor Maimônides.
Aqueles que já leram algum livro do Mishnê Torá e agora têm acesso ao “Guia”, comprovarão a sensibilidade do mestre quando diz que “o pão e o leite são para a criança, e a carne e o vinho, para o adulto”. Em sua obra Mishnê Torá, o Rambam descreve o caminho de Deus ao homem, através da Revelação, da outorga da Torá e sua estrutura de mitsvót e respectivas leis. Já no “Guia”, trata do caminho do homem a Deus, pois a razão é o caminho ideal para se chegar ao Criador. Sendo assim, aprendemos que o judaísmo e a filosofia não são incompatíveis e nem mesmo conflitantes pois, apesar de suas naturezas distintas, procedem da mesma fonte ou, como questionaria nosso mestre, acaso não seria a razão ou o intelecto humano obra Divina?
O grande Rabino Iossef Caro – autor do Shulchan Aruch no século XVI, o código de lei que norteia minuciosamente a prática das mitsvót até os dias de hoje – escreveu sobre a figura de Maimônides: “…pela qualidade e profundidade de seus escritos, Maimônides é, sem sombra de dúvida, o maior de todos os codificadores…”. Podemos afirmar também que, na mesma velocidade em que crescia a fama do Rambam nas diferentes comunidades judaicas, aumentava o número de opiniões contrárias às suas ideias. Em resumo, os três principais temas de discussão entre Maimônides e seus opositores eram:
1) A orientação ao povo judeu frente ao fundamentalismo islâmico dos almóadas.
2) A organização de seu livro Mishnê Torá, que não cita nenhuma fonte na codificação das leis.
3) A legitamação da filosofia, principalmente com a publicação do Guia dos Perplexos e do livro Madá (“Conhecimento”), parte da obra Mishnê Torá.
Permita-me, leitor, estender-me sobre o terceiro tema, pois ele tem relação direta com o presente livro.
Segundo seus adversários – todos os sábios franceses tementes a Deus – Maimônides teria praticamente “canonizado” a filosofia ao incluir conceitos pertencentes a esta área de conhecimento em seus livros. Eles então excomungaram (Chérem) parte de seus livros.
Pode-se dizer que esse conflito cessou com a intervenção do Rabino Shelomo ben Aderet, mais conhecido como Rashbá (1235–1310). Ele escreveu três importantes missivas indagando sobre a validade dos estudos científicos: “Acaso passa por nossas cabeças que nós não temos direito ao conhecimento geral?”. É preciso registrar que, naquela época – e não é muito diferente nos nossos dias – ocorria um fenômeno notório entre os jovens que estudavam o judaísmo e também as matérias laicas científicas. Cada vez mais as comunidades priorizavam os estudos não judaicos e o perigo residia no enfraquecimento do estudo da Torá. Assim, em 1305, o Rashbá escreveu: “Os estudos laicos científicos estão permitidos, tanto as ciências naturais como a filosofia, porém a partir dos vinte e cinco anos.” Esta determinação não incluía a medicina e a astronomia. Em relação aos livros de Maimônides, o Rashbá foi igualmente categórico: removeu por completo qualquer traço da excomunhão, inclusive do Guia dos Perplexos.
Mesmo assim, a posição do Rashbá foi criticado pelo Rabino Menachem ben Shelomo Hameíri (1306-1429), sob o ponto de vista pedagógico. De acordo com o historiador H. H. Ben Sasson, o Hameíri advertiu: “Vocês, honrados sábios, sabem que o homem possui vários compartimentos e tendências intelectuais... Nessa idade – vinte e cinco anos – o homem já possui uma importante responsabilidade sobre os ombros: esposa e filhos, a quem deve sustentar.” Assim, o Hameíri criticou a restrição imposta pelo Rashbá, implicando que se o objeto de estudo é permitido, é preciso que se respeite o interesse da pessoa. Isso pode ser perfeitamente entendido, pois é natural que alguns alunos gostem e se desenvolvam mais nos estudos da Halachá e outros nos estudos filosóficos; não se pode exigir um caminho único para todos os estudantes sob o ponto de vista psicológico e pedagógico – diria o Hameíri nos termos dos nossos dias.
Assim, o Guia dos Perplexos tornou-se um clássico da filosofia judaica, e vários shiurim (aulas) a respeito do livro são ministrados hoje em diferentes comunidades em Israel e nos EUA.
Vivemos numa época em que, se por um lado assistimos a uma fantástica evolução na ciência e tecnologia, por outro testemunhamos uma crise de valores na Humanidade de uma forma geral, e um enfraquecimento na identidade judaica em particular. Por um lado, estamos maravilhados; por outro, confusos e perplexos. Por isso, mais do que nunca precisamos das ideias abençoadas e sagradas de Maimônides. Você, leitor, que passou por alguma experiência em que a ciência esteve em conflito com o judaísmo, encontrará algumas respostas neste livro. Entretanto, recomendo alguns passos antes da leitura:
a) Você já estudou regularmente o Tanach? Se ainda não, procure sua sinagoga e fale com seu rabino. Esse estudo é um pré-requisito.
b) Você já estudou regularmente as leis judaicas (Halachá)? Se ainda não, procure sua sinagoga e fale com seu rabino. Esse estudo também é um pré-requisito.
c) A leitura de clássicos da filosofia judaica – e o Guia dos Perplexos é apenas um deles – deve ser acompanhada de aulas ministradas por sábios competentes, para a compreensão exata de seus conceitos e fundamentos.
d) Inicie seus estudos do pensamento de Maimônides pelo Mishnê Torá, ao menos com algumas leis do Livro da Sabedoria (Sêfer Hamadá), como as leis fundamentais da Torá (Iessodê Hatorá) e leis sobre o comportamento (Deót).
e) Ainda que, segundo Maimônides, o estudo que levará a compreensão de Deus (metafísica) é o grau mais elevado da razão humana, não podemos deixar de citar as contribuições da Cabalá que, graças aos ensinamentos do Rabino Isaac Luria (o “Ari” zA”l), ampliaram, e muito, os fundamentos e conceitos assimilados no Guia dos Perplexos – aliás, “no lugar onde termina a filosofia, começa o estudo da Cabalá”.
São estas as cinco orientações que recebi do meu mestre de Jerusalém, Rabino Iaacov Perez, shelita. Peço a Deus que lhe conceda Refuá Shelemá (cura completa)!
Rosh Chódesh Adar II, 5763.
Rabino Samy Pinto