Prefácio
Por Mary Del Priore
Assunto mobilizador, para não dizer, apaixonante, a história da Inquisição atrai centenas de pesquisadores, leitores e estudiosos. Seus aspectos complexos e sua atuação em diferentes partes da Europa e, sobretudo, no mundo colonial, instigam periodicamente novos estudos. Mas, nunca, tal matéria parece suficiente. A cada documento descoberto, relido, reinterpretado, são milhares de novas informações que vem a tona. São protagonistas da História, homens e mulheres, a revelar a ação de juízes que os perseguiam, convertiam ou discriminavam. São vozes que nos contam seus percursos sob a férula de um Tribunal incansável. E novas páginas de história se abrem para lermos a desconfiança, o controle sub-reptício que a presença da então chamada “raça hebreia” inspirava, sobretudo, frente ao poder esmagador da Igreja Católica.
A proteção para essa gente perseguida? A assimilação. Quem a praticou? Muitos que ganharam um novo status como atores históricos. Explico. Nos anos 60 do século XX, a historiografia adquiriu, graças às obras de Antonio José Saraiva e de seus discípulos, novas leituras sobre o processo de absorção entre as burguesias judia e cristã. Desse encontro nasceram os “cristãos-novos”. Estudos sobre tais grupos e as consequências de sua presença, da adesão a ela ou sobre sua identidade vêm se multiplicando. No Brasil, por exemplo, a curta ocupação holandesa, em Pernambuco, entre 1630 e 1654, deles deixou registro. Na Bahia, que inspirou estudos pioneiros, não faltaram hereges e judaizantes, vítimas da manipulação religiosa. Também na Paraíba, estudos revelam práticas de criptojudaísmo e sua contaminação por cristãos entre os séculos XVII e XVIII. Sinceridade das conversões, métodos empregados para mascarar a “Lei de Moisés”, casamentos inter-religiosos ou endogamia, mestiçagem nos rituais cotidianos de fé, práticas referentes ao “Grande Dia” – o Yom Kippur – entre outros, são temas que atraem mais e mais especialistas cujo objetivo é trazer os cristãos-novos à luz da História.
Entre tantos autores e especialistas se destaca Marcelo Meira Amaral Bogaciovas. Historiador talentoso e sensível, profundo conhecedor de genealogia, fundador e animador da Associação Brasileira de Pesquisadores de História e Genealogia, apaixonado pela história de São Paulo, Marcelo deu um passo importante ao reconstituir com detalhes o passado de cristãos-novos na então capitania e depois província. Originalmente apresentada como tese de mestrado, à Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Profa. Anita Novinsky, em 2006, sua excepcional pesquisa recebeu, então, o belo título de Tribulações do Povo de Israel na São Paulo Colonial. Sublinhe-se: uma homenagem à obra do escritor português Samuel Usque, Consolação às tribulações de Israel, que narrou o sofrimento e perseguições sofridas pelo povo judeu, publicado em 1553, em Ferrara, na Itália, em língua portuguesa. O livro servia para confortar os que sofriam a perseguição do Tribunal da Inquisição, em Portugal e Espanha.
Escrito em primeira pessoa – o que lhe dá encanto particular – o texto atual, ou seja, a tese com algumas pequenas modificações convida o leitor não só a conhecer o autor da pesquisa, mas com ele cria imediata empatia. Isso, pois Marcelo o conduz não só através de sua trajetória pessoal nas descobertas que o tema enseja, quanto nas interrogações que ele próprio se coloca: como se deu a assimilação dos cristãos-novos em território paulista nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX? O que aconteceu com os que ali se radicaram em um espaço delimitado? O que foi feito de seus descendentes e por que, o apagamento da memória cristã-nova? Foram perseguidos pelo fato de serem cristãos-novos? Não poderiam, como constava das Ordenações do Reino, ocupar cargos públicos ou servir altos postos das ordenanças? Estariam os cristãos-novos realmente alijados dos cargos da governança? Não teriam acesso às ordens religiosas, como preconizavam as instruções das ordens seculares e regulares? Assimilaram-se à sociedade paulista, e conseguiram ascender socialmente? E o que dizer sobre o preconceito anti-semita?
Preconceito? Sim. Afinal, quando na qualidade de genealogista, em palestras e conferências, Marcelo relatava descobertas de que algumas famílias paulistas tinham ascendência judaica, as reações negativas não se faziam esperar. Seus interlocutores tomavam essas notícias como um insulto à memória ancestral. Mas, ele o comprova: os cristãos-novos fizeram parte do cotidiano da vida dos paulistas desde o seu princípio. “Desde o início do povoamento, em 1532, quiçá antes, mas sem prova documental, o cristão-novo foi chegando a São Vicente, berço da nação paulista” - afirma.
Tantas perguntas... E seria possível respondê-las todas? Sim. E Marcelo o faz com a maestria do historiador que conhece profundamente as fontes e os arquivos, com o talento do intérprete da bibliografia luso-brasileira a mais atualizada, com a paixão de quem sabe que a História do Brasil está à espera de ser decifrada. Seu belíssimo livro não somente discute os avanços sobre o tema da Inquisição no Brasil como demonstra, com indiscutível competência, a mobilidade social de cristãos-novos que mediante expedientes variados ascenderam na estrutura social. Em resumo, se tornaram “cristãos-velhos”. Mais. Para proteger a identidade mestiçada, comportavam-se com mais rigor e “anti-semitismo” do que os autênticos cristãos-velhos. Quanto ao supostamente vigilante Tribunal da Inquisição, pouco importavam os fatos ou “quem era quem”. Mas a versão dos fatos.
Daí, Marcelo ter encontrado tantos cristãos-novos dentro do próprio aparelho repressivo na qualidade de familiares, comissários e até qualificadores do Santo Ofício. Tal mobilidade também se via na Corte portuguesa, pois tantos deles se tornaram servidores da Justiça, desembargadores, juízes, professores de universidades, padres, sacerdotes e religiosos, inclusive bispos, além de outros cargos significativos. Obra que já nasce clássica, Cristãos-Novos em São Paulo é leitura obrigatória e prazerosa para todos que se interessam pela história da Inquisição, de São Paulo e do Brasil.