PREFÁCIO PARA A EDIÇÃO BRASILEIRA
Tenho o enorme prazer de escrever estas palavras para a edição brasileira. A primeira edição, publicada há um quarto de século, foi pioneira no uso de testemunhos de sobreviventes do Holocausto como parte integral - juntamente com documentos contemporâneos - da história do Holocausto. Naquela época, havia relutância em considerar as memórias dos sobreviventes como confiáveis ou especialmente importantes. Tentei modificar aquela percepção. Entre os testemunhos de sobreviventes que utilizei achavam-se os prestados sob juramento durante o julgamento de Eichmann, para o qual foram procuradas testemunhas que pudessem falar sobre todas as fases do Holocausto, e todos os lugares onde ele ocorreu. Eu mesmo viajei extensamente para obter testemunhos, muitas vezes daqueles que nunca antes haviam falado sobre suas experiências.
Na época em que escrevi o livro havia um considerável sentimento de que os judeus "haviam ido como ovelhas para o matadouro". Esta crença havia dado uma coloração negativa à atitude de muitos judeus jovens - inclusive muitos jovens israelenses - em relação àqueles que passaram pelos horrores do Holocausto. Durante minhas pesquisas, fiquei surpreso com a amplitude da resistência judaica, da magnífica coragem demonstrada na revolta do Gueto de Varsóvia, aos igualmente magníficos atos individuais de provocação. O índice referente a "Resistência e Rebelião", incluía mais de sessenta itens. O índice referente a "Coragem, Atos de", continha mais trintas itens, e o referente a "Provocação, Atos de", continha mais setenta. Os judeus, assim como todos os povos capturados da Europa entre 1939 e 1945, fizeram o que puderam, em condições aterradoras, para desafiar a quem tentava destruí-los.
Outra característica de meu livro está relacionada ao esforço realizado para reconhecer os não judeus que arriscaram suas vidas - e muitas vezes também as de suas famílias - para ajudar os judeus a sobreviverem: para escondê-los, abrigá-los, e protegê-los da traição. Estes "Gentios Honrados" foram, eles próprios, vítimas da perseguição nazista, sujeitos a terríveis represálias e assassinatos em massa. Ninguém pode minimizar sua própria situação de tormento, ou o extraordinário altruísmo - muitas vezes baseados em sua criação e crenças cristãs - que os levou a arriscar tanto para salvar outros seres humanos que se encontravam em perigo.
Em minha busca por estes "Justos entre as Nações", como são conhecidos no Yad Vashem em Jerusalém, onde mais de 22.000 são homenageados, enfrentei a reticência da União Soviética em dar qualquer crédito a todos os que ajudaram os judeus durante a guerra. Em Moscou e Leningrado pedi ajuda a vários de meus amigos judeus - para encontrar estes Justos - amigos aos quais foi recusada a permissão para emigrar da União Soviética, e que estavam sob severo controle dos funcionários soviéticos, muitas vezes expulsos de seus trabalhos por se atreverem a solicitar permissão para partir. Eles fizeram longas jornadas a meu pedido, em busca de material, que pude então incorporar ao livro.
Um de meus amigos judeus soviéticos encontrou material sobre um campo de extermínio que quase não havia sido mencionado pelos historiadores. O campo de Maly Trostenets, próximo a Minsk. Dezenas de milhares de judeus alemães, austríacos, e tchecos foram para lá deportados de Theresienstadt, todos sendo assassinados ao chegar. Vinte judeus de Theresienstadt, libertados pelo Exército Vermelho em Maly Trostenets em junho de 1944, foram levados para Moscou por seus libertadores, enviados a um campo de trabalho na fronteira sino-soviética, e mantidos presos por mais dois anos.
Este livro foi dedicado ao professor Alexandre Lerner, que teve duas de suas filhas, de três e cinco anos, assassinadas pelos nazistas no verão de 1941. Trinta anos mais tarde o professor Lerner teve recusado seu pedido para abandonar a União Soviética e emigrar para Israel. Tive a esperança de, ao dedicar a ele meu livro, ajudá-lo a chegar à Terra Prometida. Finalmente foi-lhe permitido viver em Israel, onde trabalhou solucionando problemas em corações artificiais, e onde veio a falecer. Dedico a sua memória esta edição brasileira.
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PREFÁCIO DA EDIÇÃO INGLESA
No final do verão de 1959, acompanhado de um amigo polonês,- não judeu, viajei de carro até o rio Bug, próximo ao cruzamento de Malkinia, na ferrovia Varsóvia-Leningrado. Tencionávamos, eu e meu amigo, ambos estudantes, cruzar o rio pela ponte, marcada no mapa anterior à guerra. Mas ao chegar ao rio, descobrimos que ela não existia mais: fora destruída, na luta de quinze anos antes, quando o Exército Vermelho expulsou a Wehrmacht (exército alemão), do leste da Polônia.
Já era final da tarde. Da beira do rio, meu amigo chamou um camponês na outra margem, que carregava madeira em um pequeno barco, parecido com uma balsa. Ele remou até o nosso lado, e nos transportou de volta. Explicamos a ele nossa intenção, e ele nos levou até sua aldeia, distante oitocentos metros. Então, atrelou seu cavalo numa carroça carregada de troncos, e nos levou em direção ao sul, através da estrada acidentada, para a aldeia de Treblinka.
Da aldeia de Treblinka continuamos por mais dois, três quilômetros, ao longo dos trilhos da ferrovia abandonada, através de uma floresta de árvores altas. Finalmente, chegamos a uma enorme clareira, cercada de densa floresta por todos os lados. A noite chegava, trazendo com ela a friagem e um orvalho frio. Desci da carroça, e pisei no solo arenoso: um solo mais cinza que marrom. Levado por não sei qual impulso, passei a mão por aquele solo, uma e outra vez. A terra sob meus pés era áspera e cortante: repleta de fragmentos de ossos humanos.
Vinte e dois anos mais tarde, voltei a Treblinka. A ponte sobre o Bug havia sido reconstruída. Na entrada do campo havia um museu, cartazes e explicações. Mais adiante uma clareira, agora preenchida com pequenos monumentos de pedra, cada pedra inscrita com o nome de uma cidade ou aldeia, cujos judeus lá haviam sido mortos. Os locais do desvio ferroviário e da câmara de gás, haviam sido identificados e marcados. A própria ferrovia foi recriada, simbolicamente, utilizando dormentes de concreto.
Não pude me curvar, e novamente perturbar o solo. Nos anos que se passaram, havia aprendido demais sobre o que acontecera ali, e que tormentos haviam sido infligidos aos meus correligionários judeus.
A tentativa sistemática de destruir a comunidade judaica europeia - tentativa agora conhecida como o Holocausto - começou na última semana de junho de 1941, poucas horas após a invasão da União Soviética pela Alemanha. Este ataque à vida judaica na Europa continuou, sem trégua, por quase quatro anos. Em seus momentos mais intensos, no outono de 1941, e novamente no verão e no outono de 1942, milhares e milhares de judeus foram assassinados todos os dias. Quando a Alemanha nazista foi derrotada, seis milhões, dos oito milhões de judeus da Europa, haviam sido massacrados: se a matança tivesse continuado, a horrível cifra teria sido ainda maior.
Judeus morreram em campos de extermínio, locais de execução, guetos, campos de trabalho escravo, e nas marchas da morte. O testemunho dos que sobreviveram constitui o principal registro do que foi feito aos judeus durante aqueles anos. Os assassinos também mantiveram registros, muitas vezes abundantes. Mas as vítimas, os seis milhões que foram assassinados, não podiam deixar registro. Sobreviveram alguns fragmentos de diários, cartas e mensagens rabiscadas. Mas, em geral, outros precisam testemunhar sobre o que foi feito a milhões, que nunca puderam contar sua própria estória.
Este livro é uma tentativa de basear-se nas testemunhas mais próximas, as mais próximas da destruição e, por meio de seus testemunhos, contar algo do sofrimento dos que morreram, e foram silenciados para sempre.
As preparações para o assassinato em massa tornaram-se possíveis após as vitórias militares alemãs, nos meses que se seguiram à invasão da Polônia em 1939. Mas, desde o momento da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, em 1933, iniciou-se o processo devastador. Era um processo dependente do despertar de ódios históricos e velhos preconceitos, e da cooperação ou concordância de diferentes forças: a indústria, a ciência e a medicina, o funcionalismo público e a burocracia, e os mais modernos mecanismos e canais de comunicação. Dependia também de colaboradores, dos países muito além das fronteiras alemãs; e dependia, mais que nada, comentou um sobrevivente, "da indiferença dos espectadores, em todos os países".
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PREFÁCIO DO TRADUTOR
A história do Holocausto sempre fez parte de minha vida. Filho de sobreviventes, que nunca conheceu os avós, mortos em Auschwitz, vítimas "do último transporte a deixar o Gueto de Bedzin", cresci ouvindo as estórias de meu pai e à sombra do silêncio de minha mãe.
Me lembro como, já adolescente, senti um estranho alívio ao entender que meus pais haviam estado em "campos de trabalho" e não em campos de extermínio. E como fiquei chocado ao descobrir que meu pai, sobrevivente da marcha da morte após mais de três anos de trabalho em vários campos, tinha contraído tuberculose ao final da guerra. Por essa razão nasci no Brasil, pátria que os acolheu após alguns anos de recuperação na Europa destruída pela guerra.
A estória de minha família, que ainda será contada, é a estória do Holocausto; do lado de minha mãe, a perseguição na Alemanha desde a ascensão de Hitler, a Kristallnacht e a expulsão dos imigrantes poloneses que há décadas viviam em Berlim. E a fuga para a Polônia, para lá serem finalmente presos pelas tropas alemãs, logo no início da guerra.
A estória da família de meu pai, judeus poloneses da Alta Silésia envolve praticamente todos as facetas do destino dos judeus na Europa: os pais e a irmã menor, que puderam manter-se vivos enquanto os alemães não se decidiram pelo extermínio, sem exceções; a irmã mais velha, que escapou logo após a invasão e, depois de uma estada no leste da Polônia ocupada pelos russos, juntou-se ao exército do general Anders para, através da Pérsia, chegar à Palestina; e meu pai, um dos muitos jovens levados para um campo de trabalho, enquanto ainda se acreditava que os alemães tinham interesse em explorar a força do trabalho judeu e não em simplesmente exterminá-los pela exaustão.
O livro de Sir Martin Gilbert, que é agora publicado no Brasil, serviu-me de obra de referência nos últimos vinte e cinco anos. Não há quase nada publicado no mundo deste porte e desta profundidade e, certamente, o Brasil sofria a falta de um trabalho como este, acessível ao público de língua portuguesa. Quando o contatei para propor-lhe a tradução de sua obra, Sir Gilbert prontamente demonstrou interesse e entusiasmo, como se o livro já não fosse amplamente reconhecido.
Tive o privilégio de, após anos de repetidas leituras, debruçar-me sobre o texto para uma tradução minuciosa, num misto de prazer intelectual e sofrimento, em que a maioria das passagens me fazia imaginar meus familiares como os personagens descritos. Quantas noites não trouxeram pesadelos, ao final de longas horas dedicadas à tradução.
Grande parte dos nomes de testemunhas, vítimas e localidades, refere-se às regiões em que ocorreram a maioria dos massacres, na Polônia, Ucrânia, Bielo-Rússia e Países Bálticos, o que nos levou a optar por manter a grafia adotada pelo autor. Também a paginação foi mantida, refletindo fielmente a obra original, com os mapas e imagens nela incluídos.
Dedico esta tradução a meus pais, protagonistas deste trágico capítulo da história do povo judeu, mas também símbolo de sua resiliência; e a todas as vítimas, que sobreviveram ou sucumbiram à barbárie perpetrada pelos nazistas e por seus colaboradores.
Que este trabalho possa representar um alerta para esta e futuras gerações.
SAMUEL FELDBERG