Princípio Fundamental
Duas palestras
Em certa palestra sobre educação judaica, o palestrante lançou à platéia, composta de educadores e pais de escolas judaicas, a seguinte questão: “por que você como judeu segue (ou deveria seguir) o judaísmo? Porque ele é seu, é a sua herança, a sua tradição? Porque o judaísmo é ético e moral? Ou porque é um sistema de leis, ou seja, uma condição para se viver numa sociedade identificada como judaica?”.
Em seguida, depois de um breve debate, em que as pessoas revelaram e discutiram suas opções, o palestrante disse a todos que, na verdade, judaicamente falando, nenhuma das três respostas era correta.
Em outra oportunidade – tratava-se de uma aula para docentes de uma escola judaica – outro palestrante falava aos presentes sobre a era messiânica. Como ilustração e para descontrair, ele disse que se, de acordo com os cálculos estimados para a data limite da sua vinda, o Mashiach (Messias) não se revelasse até tal dia – e ele estivesse vivo até então –, ele abandonaria o judaísmo. Como parte da brincadeira, tirou por um instante a sua kipá (solidéu), atirou-a sobre a mesa do auditório e pôs a fivela que usava para prendê-la ao cabelo numa de suas orelhas, imitando um brinco. O suposto desprezo à kipá, a permanência com a cabeça descoberta e o pseudo brinco representaram a simulação de rebeldia e protesto contra a religião e seus símbolos.
Ao ouvir tal declaração e ver tal atitude provocativa, um dos docentes reagiu indignado, duvidando e questionando por que o palestrante agiria assim. Sua surpresa e reprovação à brincadeira baseavam-se no fato dele não aceitar ou compreender como ele poderia abandonar da noite para o dia uma tradição, que até então lhe era tão cara a ponto de nortear seu estilo de vida e sua concepção de mundo. O palestrante pediu desculpas ao professor, questionando se o havia ofendido com a brincadeira. O docente disse que não, mas que não havia entendido a mensagem por trás do gesto.
Motivo único
A explicação que o segundo palestrante deu àquele professor foi a mesma que o primeiro palestrante citado acima trouxe a sua plateia: não cumprimos os preceitos judaicos porque estamos mantendo viva uma tradição milenar ou porque as leis judaicas dão legitimidade e identidades comuns às comunidades israelitas espalhadas pelo mundo – mesmo porque o judaísmo mudou muito e sofreu inúmeras adaptações e divisões geográficas e ideológicas nestes seus cerca de 3500 anos.
Também não adotamos o estilo de vida judaico por achá-lo um caminho para a felicidade e a plenitude (embora ele seja) ou por seu teor ético e moral. Afinal, seria considerada ética e moral, por exemplo, uma ordem divina expressa de oferenda do próprio filho como sacrifício – como a que recebeu Abraão – na maioria das sociedades civilizadas no decorrer da história humana? Ou o preceito do Brit Milá (circuncisão), realizado idealmente num recém-nascido de 8 dias?
O motivo mais judaico para se viver de acordo com a Torá e as legítimas orientações dos sábios é em última instância um só: é porque o Deus único, Criador do universo e de todas as criaturas (inclusive o ser humano), Se revelou há 3325 anos no monte Sinai e ordenou que assim fosse feito! Em outras palavras, seguimos o judaísmo porque o concebemos como a verdade, simplesmente porque acreditamos que ele vem da fonte da verdade – a vontade divina. Essa é a única justificativa plausível e legitimamente judaica para cumprir qualquer mitsvá com verdadeira fidelidade e fervor. Somente este motivo fundamental poderia justificar a postura obediente e implacável de Abraão ou a convicção dos pais de um recém nascido.
Se a pessoa não entende, admite ou acredita que houve revelação, a coisa muda de figura, pois ela buscará outros motivos – possivelmente os citados na palestra –, para manter seu judaísmo. Estes motivos fatalmente esbarrarão em problemas relacionados aos próprios princípios judaicos, como questionar o sentido de preceitos pela ótica humana restrita, adaptar a Torá aos modismos de cada época de forma ilegítima e/ou por interesses escusos, e, provavelmente, o pior (e aqui não sabemos se esta é a conseqüência ou a causa): considerá-la uma obra humana. Ao desvincular a Torá de seu caráter divino intrínseco, abrem-se os caminhos que podem levar à descrença com relação à existência do próprio Criador.
Racionalizar os preceitos
Há uma passagem do Talmud que aborda de certa maneira este conceito fundamental ao comentar uma mitsvá (preceito) muito peculiar que aparece em nossa parashá. Eis o versículo que traz a mitsvá e o trecho talmúdico:
“Quando encontrares algum ninho de pássaros diante de ti, pelo caminho, em qualquer árvore ou no chão, com passarinhos ou ovos, e a mãe posta sobre os passarinhos ou sobre os ovos, não tomarás a mãe estando com os filhos. Enviarás a mãe e os filhos tomarás para ti, a fim de que te seja bem e prolongues os teus dias” (Deuteronômio 22:6 e 7).
“Aquele que diz ‘Tua misericórdia chegará até o ninho de pássaros’ (...) devem calá-lo. (...) Qual o motivo? Divergiram dois amoraim (sábios da guemará) da terra de Israel – Rabi Iossi bar Avin e Rabi Iossi bar Zvida. Um disse: porque (essa declaração) cria inveja (entre as criaturas) na criação. E o outro disse: porque faz de Seus princípios misericórdia e não são senão decretos” (Berachot 34b).
A resposta de Rabi Iossi bar Zvida nos remete à idéia trazida anteriormente. O sábio reafirma o princípio de que, em última instância, devemos encarar todos os preceitos divinos – sejam eles aparentemente mais ou menos lógicos, mais ou menos éticos, mais ou menos agradáveis, fáceis ou difíceis – como decretos, isto é: a Sua vontade.
Pode ser que a intenção do Todo-Poderoso ao ordenar que se afugente a ave-mãe esteja relacionada à misericórdia – como percebemos em diversas outras mitsvot nas quais estão embutidos supostos sentidos e explicações sobre os quais podemos especular. No entanto, não podemos nem devemos tentar racionalizar os Seus preceitos em busca dos motivos (no sentido de pretextos ou justificativas para o cumprimento), mesmo com base na reflexão das mentes mais brilhantes (mesmo se pudéssemos uni-las todas). Desta forma os limitaríamos e correríamos o risco de os condicionarmos à compreensão humana, incapaz de abranger todas as dimensões envolvidas com os mandamentos de Deus, quanto mais Suas intenções. Podemos e devemos buscar explicações. Ou seja, é legítimo fazê-lo. No entanto, se não encontrarmos razões que nos pareçam plausíveis, assim mesmo devemos cumprir a mitsvá, já que essa é a vontade do Criador.
O cinzeiro de Dougie
Há um filme americano (uma comédia) no qual um policial cinquentão de Seatle, Burt Simpson, que está prestes a se aposentar, acha erroneamente que tem uma doença terminal degenerativa e que vai morrer em duas semanas. Desesperado, trata de conseguir que o departamento de polícia pague a sua ex-mulher – a quem ainda ama – e ao filho de 10 anos um seguro de vida de 300 mil dólares. Mas, ao consultar as regras depara-se com um pequeno “porém”: tem que morrer em serviço para que este prêmio seja pago.
Enquanto não se mete em missões suicidas, tenta fazer as pazes com a ex, pedindo-lhe perdão por todas as bobagens que havia feito com relação a ela, desde a época do colegial, quando namoravam. Numa dessas cenas, o policial pega um cinzeiro rústico de argila envernizado de cima da mesa de centro da sala, o segura com emoção e comenta com a mulher:
– Lembra quando o Dougie (o filho) fez isto para nós?
– Burt, – responde a mulher – o Dougie não fez isso para nós. Nem foi ele que fez!
– Não? – E, olhando para o cinzeiro com um misto de surpresa e constrangimento, joga-o displicentemente de volta sobre a mesinha.
Essa cena trivial pode nos servir como uma metáfora para a reflexão que fizemos até aqui. Se assistisse à cena descrita acima, o professor da segunda palestra – aquele que reagiu à brincadeira com a kipá e a fivela – talvez tivesse achado um absurdo o policial menosprezar repentinamente, em frações de segundo, um objeto que há anos reverenciava como um presente feito pelo seu amado filho na aula de arte da escola. “Ora” – diria o tal professor, se seguir sua linha de raciocínio original – “o cinzeiro já adquiriu por si um patamar de objeto sagrado para o pai, independentemente de ser ou não um produto autêntico de seu filho”.
Essa opinião pode ser considerada bela, singela, talvez idealista. É, porém, romântica e utópica, pois, em última instância, não passa disso mesmo: uma opinião, um conceito relativo. Se o cinzeiro não é produto do filho, fica a cargo do policial continuar reverenciando o objeto ou não. Se os sentimentos e os significados embutidos no objeto se foram instantaneamente, não há porque questionar, muito menos reprovar, o pouco caso igualmente súbito. Se, entretanto, os mais sensíveis se sentem (ou querem se sentir) conectados aos seus “cinzeiros”, mesmo conscientes de sua condição de ilegítimos ou considerando-os como tais, que o façam. Mas que não exijam isto de todos. Por outro lado, se o objeto ou a herança são autênticos, entramos no campo do absoluto. Passa a ser obrigação moral do policial – como pai – dar a devida importância ao cinzeiro.
Poderíamos sugerir outros exemplos de objetos aos quais damos valor inestimável por acreditarmos que pertenceram a avós ou a antepassados mais antigos. Podemos utilizar um exemplo real da Torá, de uma cena fortíssima: a quebra das tábuas da lei por Moisés. Por que Moisés as quebrou? Há inúmeras respostas. Uma delas pode ser: pelo fato de constatar que o elo de fé entre Israel e Deus não era verdadeiro naquele momento. Se as tábuas representavam esse elo e concretizavam essa aliança, que valor tinham se o elo se mostrou falso?
Judaicamente falando, deve-se cumprir as mitsvot da Torá e dos nossos sábios porque são ações e valores vinculados e oriundos da verdade absoluta, isto é, das vontades do Criador. Quem os cumpre sem esta base fundamental terá que se apoiar em motivações relativas, que não podem ser impostas a todas as pessoas.