Prefácio
Léo Gerchmann é jornalista, com passagens em alguns dos principais jornais do Brasil, como a Zero Hora e a Folha de São Paulo. Entrevistou personalidades como Lula e Mujica, foi correspondente internacional em Buenos Aires, cobriu diversos acontecimentos pela América Latina e já foi convocado (como repórter) para Copa do Mundo, o que, aliás, até já rendeu livro. Pai-coruja do Pedro e da Paula, marido da Dione, publicou vários livros sobre sua outra paixão: o Grêmio, mais uma herança do seu pai, o querido Henrique, também conhecido como Herschel, seu nome em iídiche, língua falada pela maior parte dos imigrantes judeus que vislumbraram no Brasil um porto seguro contra o antissemitismo e a discriminação milenares que passaram.
Léo, filho do Bom Fim, da Miriam e do Herschel, foi mais um judeu que sentiu o mundo mudar após o Hamas invadir Israel para realizar um pogrom, semeando mortes, estupros e destruição. Aquele dia abalou a sensação de segurança do povo judeu, o que se ampliou nos dias e meses seguintes pelo ressurgimento do antissemitismo anabolizado pelas redes sociais, pela incorporação desse ódio milenar às estúpidas polarizações que minam o nosso dia a dia já há alguns anos. Nesse momento, Léo fez o que sempre soube fazer: escreveu. Ele, de forma corajosa, assumiu o risco de narizes torcidos e de rompimentos de amizades de décadas e expôs suas convicções e emoções em suas colunas semanais na SLER, onde escreve todas as sextas-feiras.
Nas colunas publicadas no site e, agora, condensadas neste A Cronologia Alef Bet, que tenho a honra de prefaciar, Léo nos oferece um olhar pessoal, mas que, ao mesmo tempo, mostra opiniões e sentimentos representativos da comunidade judaica brasileira. A cronologia começa com o pogrom do Hamas em Israel, com mais de 1220 vítimas e repercute os fatos que se dão em desdobramento, na política internacional e interna.
O conjunto de textos trata de um tema milenar, porém, muitas vezes, mal compreendido: o antissemitismo. A coragem é necessária ao falar disso, pois este século XXI é pródigo de exemplos de pessoas e grupos que aceitam ler somente aquilo que confirma suas convicções. Isso é o que chamam hoje de pós-verdade, e a história do antissemitismo está repleta das mentiras e das tais "fake news": que os judeus são assassinos de Cristo, seres devassos e inconfiáveis, que só se interessam por dinheiro e explorar as riquezas alheias. Mas, talvez nada supere o mito da conspiração mundial judaica: os judeus buscam dominar o mundo e, através dos Sábios de Sião, do lobby judaico ou do globalismo, forçam os demais países a entrar em guerras e transformam governos em fantoches de suas vontades. Basta espremer um pouco os argumentos à direita e à esquerda do espectro político que surge a ideia de que os judeus são poderosos, ricos e dominam o mundo nas sombras, a verdadeira "elite transnacional".
Umberto Eco, talvez um dos intelectuais que mais se dedicou tanto ao estudo das teorias da conspiração como do antissemitismo, lembra que o antissemitismo é uma discriminação que sobrevive por 2 mil anos, e qualquer ideia que sobreviva tanto tempo adapta-se e transforma-se de acordo com os novos contextos. O semiólogo italiano apontou, em 2009, quando de mais uma rodada de morticínio envolvendo Israel e o Hamas, que "seria possível entender os protestos políticos contra o governo israelense, não fosse pelo fato de que essas manifestações costumam estar impregnadas de antissemitismo". Em artigo com o apropriado título de "O novo antissemitismo", ao falar que os protestos contra Israel degeneravam para o mais puro antissemitismo, ele alertou que "a esta altura isso parece tão normal que parece anormal considerá-la anormal".
Segundo Eco, o antissemitismo é um preconceito que cheira a fundamentalismo religioso, caracterizado por posturas irracionais e fé cega, repleto de contradições: "O antissemita não gosta da ideia de um judeu viver mesmo que por um tempo em um país que não seja Israel. Se, entretanto, um judeu escolher viver em Israel, o antissemita também não gosta disso." Como conta Amos Oz: "As ruas europeias tinham pichações nas quais se lia: "Os judeus para a Palestina? (sessenta anos depois, essas mesmas paredes na Europa tinham pichações contrárias: ?Fora da Palestina, judeus?...)".
As características do antissemitismo da segunda metade do século XX, e que perduram até hoje, foram delineadas por Paul Warszawski, em um artigo chamado de "O Judaísmo e o Novo Antissemitismo", datado de 2009. Primeiramente, ele abandona o formato exclusivamente religioso, herdado da Igreja Católica e abraçado pelos partidos e grupos nacionalistas de direita durante o século XIX e XX. O fundamento racial, típico do nazismo, também é deixado de lado, salvo em grupos marginais. O antissemitismo não é mais religioso nem racial, passa a ser fundamentalmente político.
Por outro lado, permanecem as ideias do judeu como um elemento demoníaco, conspiratório e explorador capitalista. Ideias que são recicladas e ganham uma "roupagem progressista" quando dirigidas não mais aos judeus, mas ao sionismo e ao Estado de Israel, e é projetado nas comunidades judaicas ao redor do mundo. Como diz o autor: "(..) hoje, a hostilidade a respeito do judeu é suscitada em termos políticos, centralizada a propósito do mesmo elemento demoníaco tradicional, mas que se refere ao papel desempenhado pelo Estado de Israel e o movimento sionista em sua projeção para todas as comunidades judias do mundo".
Nesse impasse, o judeu é submetido ao infame teste da dupla lealdade, em que, para pertencer, será obrigado a renegar seu vínculo com o povo judeu e, principalmente, com o Estado de Israel, pois, como diz o autor, o antissemitismo atual, "gostemos ou não, é jogado no tabuleiro político internacional".
A obra de Léo Gerchmann trata desse (não tão) novo fenômeno, mas que voltou à evidência na esteira do massacre perpetrado pelo Hamas em outubro de 2023 e da posterior reação israelense, gritando contra a invisibilidade dos judeus brasileiros, ao mesmo tempo em que denuncia o antissemitismo.
Marcos Weiss Bliacheris